À porta das eleições na vizinha África do Sul, o @Verdade conta-lhe em pormenor a história de dois dos 18 moçambicanos que escaparam dos braços da morte num assalto ocorrido há três anos, no percurso Maputo – Durban.
É um assalto já com três anos de idade. Não obstante esse tempo todo, quando a proposta do tema da conversa é justamente sobre os inúmeros “hijacking” – assaltos à mão armada a veículos – nas rotas que levam à terra do rand os olhos de Tatana e de Betolas tremulam.
Reconstituir essa trágica história não é fácil para ambos. A principal testemunha do sofrimento jaz na memória: sete mil dólares americanos, 2 mil rands e 5 mil meticais. “Era dinheiro para iniciar um negócio já que a minha mãe, viúva há seis meses, juntara para comprar uma carrinha para garantir a nossa subsistência”, refere Betolas. Àquele valor devem-se acoplar os celulares, fios de ouro e sapatilhas carríssimas, entre outros objectos indispensáveis a quem vai à frígida e montanhosa cidade sul-africana de Durban que dista 700 quilómetros do Grande Maputo. “Sempre que ouço ou vejo algo ligado à África do Sul sinto-me na condição de assaltado”, asseguram os dois amigos. No entender destes dois, é como se todos os dias fossem à África do Sul e todos os dias fossem assaltado pela mesma gang. “O Tatana, coitado, ia morrendo apenas porque, mesmo diante dos relatos de assaltos nas rotas Moçambique -RSA, aceitou ir comigo”, reconhece Betolas.
Quarta-feira, cinco da matina. Betolas bate à porta do Tatana que também já está na sala à espera do companheiro da viagem. Agasalhados dos pés à cabeça, os dois vizinhos do “Central-B” descem à baixa da cidade de Maputo, para a paragem internacional. Há muitos, mas um Toyota Hiace é o escolhido para levá-los não a um parque de second hand’s cars, mas sim a um extenso canavial. É lá onde, depois de lhes terem desfeito dos seus haveres serão estendidos, tal como Deus os pôs no mundo, num chão gelado prontos para serem fuzilados como animais.
O piu-piu-piu dos pássaros anuncia que já são cinco horas. O motorista, um ancião de cerca de 50 anos, está, tal como os passageiros, entusiasmado com a viagem. Por isso põe a chave de ignição e o Toyota, lotado, começa a andar. Ou melhor, a correr, a “voar”. A rota Maputo-Goba-Coolela-Joahnnburg não era, certamente, coisa que o assusta. Por isso, está confiante no seu potente carro equipado com motor turbo, seis velocidades.
9 horas, eles já deviam ter deixado Goba. Mas uma avaria obriga-os a ficarem aqui enquanto chega outro Toyota Hiace que os baldeará e os levará ao trágico `destino´. 11 horas. De novo estão num Hiace azul que serpenteia a estrada que reparte Suazilândia em dois locais. 15 horas deixam para trás Golela, fronteira entre a terra dos Sobhuza e dos Zulu. São 19 horas e estão na portagem “ultracity”, na zona chamada Balito. Daqui para Durban são cerca de 20 quilómetros. Alegria.
Puro engano: enquanto o motorista paga a taxa, um “VW” vermelho arranca na mesma direcção. No interior há cinco jovens. Um quilómetro depois da portagem deparam com a carrinha estacionada na margem esquerda. O Tatatana, que está no banco da frente para indicar o caminho ao motorista que viaja nessa rota pela primeira – note-se que se fez baldeamento – alerta-o do perigo iminente. Em vão. “Eu tinha-os visto a atirarem um tubo com pontas afiadas quando faltavam apenas 100 a 200 metros de onde estavam”, recorda-se Tatana.
É um assalto e o espaço é pequeno para o pavor que acomete os passageiros. Tudo parecia ter acabado e os bandidos iam-se embora quando um celular, escondido nas partes íntimas de uma das senhoras, toca. É o marido que, como o fez desde o princípio da viagem, quer saber das últimas notícias. Não pode saber. E é o que falta: “ os bandidos acharam isso uma traição”, diz Betolas. O que se pensava ser alivio é agora um martírio: “espancaram a senhora com a coronha da arma!”
Afinal, não era o fim da tragédia? Era mas já não é: o idoso motorista – que se transformou num bebé – recebe a ordem para inverter a marcha. “ Era como se estivéssemos a regressar a Maputo. Fosse isso ao menos. Mas não: Um dos bandidos, que mal sabia conduzir tomou o camando do Hiace cujo “PIN” arrancou ao ancião à força da coronha”, recorda Betolas.
Quinhentos metros depois, a viatura e todos os seus ocupantes – incluindo os dois assaltantes – deixaram o asfalto e seguiram uma rota de terra batida. 45 cinco minutos depois, após curvas e contracurvas entraram num extenso canavial.
Devem ser 20 horas. Há casas e pessoas aqui perto. Caso não, onde é que os bandidos vão buscar cerveja com o dinheiro roubado? À luz do luar, os infelizes recebem a ordem: sair para serem novamente revistados um por um e deitarem-se de barriga. O “reguila”, esse, está avisado: “ será o primeiro a ser fuzilado!”
Numa autêntica reedição dos históricos de campos de concentração nazista de Adolfo Hitler – quem desafiou o mundo e pagou caro – os carrascos divirtem-se, bebendo cerveja que compram ali ao lado. E comendo víveres das vítimas. “ Já se podem despedir das vossas famílias” gritaram.
De repente, um dos assaltantes disse, num português fluente e ci-changana maputense: “Vamos lá matar estes gajos, antes que nos denunciem”. Por desígnios insondáveis da natureza, eis que enquanto lançavam improprérios e apelavam para as últimas rezas e manipulavam as AKM’s, um dos bandidos diz: “Não, não matem, são moçambicanos, nossos irmãos estes.”. No desespero, a esperança de voltar a viver. “ Ok, ok, ok… mas escutem uma coisa: ‘permaneçam deitados aqui até nós chegarmos ao nosso destino!”, berrou um dos carrascos, por sinal o chefe. E arrancaram, deixando para trás 18 almas sem bens, mas com vida !
Ali ficam mais duas horas. Só depois decidiram levantar-se e enfrentar a noite e o medo. Andaram até alcançarem uma auto-estrada. Usam um “SOS” e chamam pela Polícia. Voltam a marchar. Debaixo de uma ponte, cruzaram com outros assaltantes que se zangaram quando souberam que “fomos assaltados”. Três ou quatro horas da manhã apareceu um caimão cujo motorista se prontificou a ligar para a Polícia que veio de imediato ao encontro das vítimas.
Estão na esquadra. Questionário. São transferidos para outra esquadra que comunica o infortúnio ao consulado que responde que não há meios para socorrê-los. Um polícia, que diz ter um irmão na Beira, mitiga o sofrimento com um chá e leite quentes. Da Associação Moçambicana de Transportadores receberam comida, mantas e boleia de regresso à casa.
Passados cerca de três anos, o medo de usar a carrinha Zola Budd persiste. “ Dizer que não tivemos medo de morrer, estaríamos a mentir”, dizem Tatana e Betolas. Certamente que é uma angústia compartilhada por todos os que percorreram cerca de mil e quinhentos quilómetros – Maputo-Durban e vice-versa – de terror!