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Malambe – Olá minha cega do chocalho Aos cegos de Tete

Nunca te tinha visto antes, em nenhum lugar. Também por causa disso não te podia reconhecer. Nunca ninguém me falara de ti, e eu não conheço o teu nome. Mas eis que hoje resolvo escreverte esta carta que me acende a alma. 

Que caustica o meu dentro largo, onde cabem todas as dores que vou coleccionando nestas estradas imensas e íngremes que passam pelo lugar onde te vi pela primeira vez. Tu nem me viste e jamais me verás, a menos que Deus se compadeça de ti e te devolva a vista, o que é pouco provável porque vivemos numa era em que as pessoas acreditam cada vez menos no Arquitecto Supremo, que, com amor absoluto, com bondade sem limites, desenhou este mundo cantado por Louis Armstrong.

Nunca me verás e estou aqui mesmo perto de ti, contemplando os teus olhos grandes que pestanejam em vão. Trago uma máquina fotográfica e tiro-te várias fotos que ainda não publiquei. Não sei se vou publicá-las porque estou dividido entre mostrar estas imagens belíssimas e fazer propaganda da tua invalidez. Eu não me compadeço de ti. Nunca verterei as minhas lágrimas chorando o teu sofrimento. Não faço isso. As minhas lágrimas também não serão derramadas para a criança que te acompanha como um fiel cicerone.

Não faço isso. Não choro porque essa não é a minha vocação. Eu te amo mesmo sem poder fazer nada por ti. Mas será mesmo que não posso fazer nada por ti? Posso sim, porém, sou igualzinho a este fracasso que sou, por isso não farei nada por ti. Estou aqui à tua frente e tu olhas para mim e não me vês. A tua criança fustiga-me com os olhos que, ao contrário dos teus, vêem na plenitude.

Ela tem a mão estendida na minha direcção e eu trago algumas moedas no bolso. Não sei se te dou esmola, minha querida, ou se te dou algumas palavras no meu parco nyungwe, que vou aprendendo, ouvindo e perguntando. Mas também palavras para quê, se o que tu queres mesmo é o dinheiro para comprares pão e xikowa (peixe seco) e nthsima (farinha de milho)? Palavras para quê se nesta estrada larga que eu escolhi não poderás ir comigo?! Na tua mão direita tens o chocalho que tocas a espaços, para acompanhar a tua voz melancólica que canta como as rolas ao cair da tarde.

Mas é assim como tu preenches os teus longos e sofridos dias sentada no passeio com a tua criança, debaixo desse sol cáustico, que não nos deixa sentir o cheiro da lama do Zambeze. Tenho algumas moedas que agora entrego, sem saber se o devo, à tua criança, que já não olha para a frente. O horizonte da tua criança morreu debaixo da tua cegueira, minha querida, e eu estou aqui, perto de ti. Apetece-me ir contigo para este lado que também desconheço.

E a temperatura é demasiadamente agreste para te queimares sozinha e a tua criança. Estou com vontade de te dar a minha mão. Levantar-te do chão sujo onde estás sentada e levantar-te, mas não posso. O fracasso que sou devasta-me todo. Já não suporto este sol que me torra os ossos e não consigo sair. Tenho de ir, meu bem. Estou obedecendo a outros sinais e as moedas estão aí, com a tua criança.

Diz a ela para ter cuidado senão ainda lhe arrancam aquilo que te dei com amor e dúvida. Não sei quando voltarei a ver-te e quando voltarás a sentir o meu cheiro. Quero ouvir de novo as tuas canções. Sentir o som do teu chocalho. Quero ver os teus olhos que pestanejam em vão. Quero olhar à tua volta e ver as pessoas passando por ti como se fosses um tronco trazido pelas mãos do diabo.

Oh, que bom verte e ouvir-te! Pareces uma rola que canta ao cair da tarde. E eu gostaria de transmitir todos os meus sentimentos por ti, porém, como diz o poeta, há coisas impossíveis, ou mesmo improváveis de se transmitir com palavras, escritas ou verbais. Mas se me deres a tua mão e caminhares comigo, quem sabe talvez, por milagre, os nossos sentimentos não se comunicam!

Quem sabe! Tchau, minha querida. Passarei por aqui, de novo. Um dia. Quem sabe, talvez! Para te ver e ouvir as tuas canções.

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