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Mafalala Blues homenageia “a voz que abriu a picada por onde todos nós passámos”

Mafalala Blues homenageia “a voz que abriu a picada por onde todos nós passámos”

A poetisa e nacionalista moçambicana Noémia de Sousa foi, esta terça-feira, homenageada a título póstumo no Centro Cultural Franco- Moçambicano, em Maputo, no âmbito do Mafalala Blues, projecto concebido pela sobrinha-neta Camila de Sousa. “Deram-me 10 minutos para falar da Noémia de Sousa. Vou respeitar esse período porque isto não é uma aula”, começou por dizer o académico, jornalista, escritor e intelectual Calane da Silva.

Mas que voz é esta de Noémia de Sousa? “Foi a primeira voz da literatura moçambicana, no feminino, a mostrar a verdadeira face deste país à beira do Índico”, começou por referir Calane. Para, em seguida, traçar uma rápida biografia: “Noémia não nasceu na Mafalala, veio ao mundo do outro lado, na Catambe. Só mais tarde é que veio habitar a mítica casa grande da Mafalala.”

“Muito cedo Noémia percebeu que a realidade era muito mais cruel do que aquela que lia nos livros que lhe chegavam clandestinamente. A realidade era muito mais cruel do que dizia Franz Fanon, que nos despertou para o sentido ideológico do negritude.”

Calane lembrou ainda que à sua casa todos eram bem-vindos. “Ali ela acolhia moçambicanos de todas as epidermes: brancos, asiáticos, negros, mestiços. Muitos juntaram-se ali e ali constituíram grupos de militantes para lutar pela independência do país.”

Calane falou também da sua prisão pela PIDE (a polícia política portuguesa) em 1949 “porque reivindicava a independência de Moçambique. Essa voz primeira teve uma força extraordinária.”

Militância Prática

Depois fez questão de frisar que, tanto Noémia como José Craveirinha, não se limitaram a pegar na caneta para expor as atrocidades do colonialismo. “Encarnaram também a prática: não bastava escrever sobre o sofrimento do povo, com poemas como:

Se me quiseres conhecer,

estuda com olhos bem de ver

esse pedaço de pau-preto

que um desconhecido irmão maconde

de mãos inspiradas talhou e trabalhou

em terras distantes lá do Norte.

 

Ah, essa sou eu:

órbitas vazias no desespero de possuir vida,

boca rasgada em feridas de angústia,

mãos enormes, espalmadas,

erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,

corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis

pelos chicotes da escravatura…

Torturada e magnífica,

altiva e mística,

África da cabeça aos pés,

– ah, essa sou eu

mas também trabalharam na militância clandestina, tendo recordado a célebre história em que Noémia acabou por engolir um pedaço de papel comprometedor pouco antes de os agentes da PIDE lhe invadirem a casa, evitando assim uma provável prisão. “A história desse papel engolido virou mito na família.”

Antes da intervenção de Calane da Silva, já tinha passado numa tela gigante o filme de autoria de Camila de Sousa – sobrinha-neta de Noémia – inserido no projecto Mafalala Blues centrado na figura de Noémia e em histórias daquela casa mítica. “A minha ligação a ela (Noémia) está aqui, contei-a através deste filme e desta instalação, porque não sabia fazê-lo de outra forma”, referiu Camila.

Exilada para não despertar consciências

Em 1951, Noémia auto-exila-se em Lisboa, “não porque queira lá ficar, mas porque a PIDE não a queria aqui. Ela aqui despertava muitas consciências à sua volta por isso era preciso retirá-la daqui”, diz Calane. E acrescenta: “A sua presença em Moçambique seria o ponto de luz na escuridão que aqui se manifestava.” Assim, Noémia foi empurrada para Lisboa, seguindo posteriormente para Paris, regressando à capital portuguesa pouco antes de revolução de 25 de Abril quando a ‘primavera marcelista’ permitiu o regresso de muitos exilados.

Já após a independência a casa grande Mafalala continuou a ser muito frequentada. “Era lá que fazíamos as nossas festas ao fim-de-semana, onde declamávamos poemas da Noémia, do Craveirinha e os nossos próprios poemas”, recorda Calane. E prossegue: “Foi naquela casa que fizemos a despedida clandestina do Camilo que saiu dali para se juntar à Frelimo, continuando a saga daquela família, que é uma família que se alarga a todo o bairro da Mafalala. Aliás, Noémia dizia: ‘Ah! Deixa passar o meu povo.’ E foi por aquela casa que o povo passou, porque ela abriu caminhos para que aquele povo passasse por ali”, referiu Calane que terminou com uma citação de outro poeta, Rui Knopfli, a propósito de Noémia: “Foi a voz que abriu a picada por onde depois todos nós passámos.”

Poemas que inspiraram líderes

Calane lembrou ainda que nos anos ´50, quando África despertava para o nacionalismo e para as independências, muitos dos futuros líderes, entre eles Kwame Nkrumah do Gana, inspiraram-se no poema de Noémia “Se me Quiseres Conhecer”. “Ela levou o sentido do pan-africanismo a todos aqueles que lutavam pela auto-determinação. Aquele poema circulava por todos os grandes dirigentes da época.”

Noémia esteve mais de 40 anos sem escrever. Mas antes de “desencarnar” voltou à escrita com dois poemas: “O primeiro aquando da morte de Samora Machel. O outro quando eu, o Craveirinha e ela fomos convidados pelo Carlos Pinto Coelho para ilustramos pela escrita um livro dele em que ela escreve “A mulher que Ri à Vida e à Morte”, um poema de despedida:

Para lá daquela curva

Os espíritos ancestrais me esperam.

Breve, muito breve

Tomarei o meu lugar entre os antepassados

À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil

As unhas córneas de todos os labores

Este invólucro sulcado pela aranha dos dias

Enquanto não falo com a voz do nyanga

Cada aurora é uma vitória

Saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo Oyo, oyo, vida!

Para lá daquela curva

Os espíritos ancestrais me esperam

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