O karate é uma das poucas modalidades desportivas que têm içado a bandeira do país nos grandes mastros do desporto mundial. É, na verdade, uma cultura oriental transformada em desporto, que, pese embora não seja reconhecido como modalidade olímpica, é praticado em todo o mundo.
Deste desporto no país pouco se fala e tão-pouco se publicita. Porém, é aqui onde reside o maior orgulho desportivo na actualidade, uma vez que dois campeões mundiais dos vários estilos que o karate tem são moçambicanos. Aliás, muitos vicecampeões a nível planetário desta modalidade são deste país.
Nesta edição, temos como entrevistado Carlos Dias, presidente da Federação Moçambicana de Karate (FMK), que explica como é praticada esta modalidade em Moçambique e os segredos do sucesso em eventos mundiais.
O nosso interlocutor fala também dos problemas que existem no seio do organismo que dirige e lança duras críticas aos jornalistas desportivos que, na sua óptica, têm sido também responsáveis pelo “assassinato” das modalidades desportivas individuais no país.
@Verdade – Quando é que surgiu a Federação Moçambicana de Karate (FMK)?
Carlos Dias – A Federação surgiu em Fevereiro de 2011 e foi com o propósito de satisfazer os interesses do país nos X Jogos Africanos que decorreram em Maputo.
@V – E como é que ela surge?
CD – Existia no país desde 2007 a Comissão Nacional de Karate liderada por Jerónimo Quizito, cujo objectivo era de, em 10 meses, criar uma federação, após a emissão de um despacho pela Direcção Nacional dos Desportos e assinado pelo então ministro dos Desportos, Joel Libombo.
No entanto, o processo não avançou devido aos conflitos que existiam no seio da família do karate. Naquele período, a ideia era estabelecer uma federação para o país poder participar nos Jogos Africanos que decorreram na vizinha África do Sul, facto que só veio a acontecer em 2011, já em Maputo, onde conquistámos a medalha de ouro.
@V – E o Carlos Dias como é que aparece?
CD – Quando em 2011 houve a certeza de que existiria uma federação, eu estava certo de que seria o secretário- técnico, porém, fui convidado para ser o presidente porque reunia as qualidades e desempenho necessários para ocupar o cargo, na óptica dos associados. Houve eleições e foram estabelecidas duas listas na corrida e a liderada por mim era a segunda. A outra desistiu e ganhei por cinco votos a favor e um nulo.
@V – O que é o karate e por quantas disciplinas é composto?
CD – O karate é uma arte marcial oriental vinda do Japão. É uma cultura daquele país e o termo karate significa mãos vazias. Ela é composta por quatro estilos, nomeadamente Shotokan, Shitoryu, Wado Ryu e Gojo Ryu. Existem outros estilos, porém, são todos derivados destes quatro que acima mencionei, sendo que todos estão filiados na Federação Mundial de Karate (WKF).
@V – A que outros estilos se refere?
CD – No mundo existem hoje mais de mil estilos de karate. Contudo, é preciso entender que as competições estão dividas em dois níveis: kata e kumité, que podem ser individuais ou representando equipas, quer em masculinos, quer em femininos.
@V – E qual é a diferença entre kata e kumité?
CD – Kata é uma série de movimentos coordenados em ritmo, que o karateca executa em várias direcções. É uma luta imaginária contra vários adversários. Se é em equipa, na competição os atletas devem fazer uma demonstração de movimentos reais, o que se chama de bunkai, em que só participam três elementos da equipa. Kumité, por sua vez, é a parte da luta levada a cabo por dois karatecas.
@V – O que se pode dizer do estado actual do karate em Moçambique?
CD – O estado do karate em Moçambique é muito bom.
@V – Porquê?
CD – Temos uma boa prestação a nível mundial. Como se pode notar, é a modalidade do karate que tem trazido medalhas a nível internacional para o país.
@V – Sente-se feliz com isso?
CD – Estou feliz, mas não relaxado. Nós não vamos parar por aqui. Estamos ainda em crescimento e queremos que o país todo esteja em grande nível e que haja karate como pretendemos em todas as províncias.
@V – Enfrentam alguma dificuldade?
CD – O karate é como as demais modalidades. Só tem a particularidade de ser recente no país, daí ter alguns problemas básicos tais como a falta de instalações e de dinheiro.
@V – E os desafios?
CD – O grande desafio neste momento e que elegi como projecto neste mandato de quatro anos é formar associações provinciais em todo o país e ter uma estrutura forte e sólida em todas as regiões do país para satisfazer os reais interesses dos karatecas.
Posso citar aqui um método que decidimos adoptar de forma a atingir o objectivo acima mencionado que passa necessariamente por as associações mais consistentes e bem equipadas prestarem auxílio às outras da mesma região. Assim sendo, teremos o seguinte cenário: a Associação de Maputo vai assistir as das províncias de Gaza e Inhambane; a de Sofala vai ajudar as de Tete, Manica, e Zambézia. Na zona Norte teremos a de Nampula a auxiliar as associações provinciais de Cabo Delgado e de Niassa.
@V – Estas ajudas incidem em que aspecto?
CD – Em todos os aspectos, para que haja um desenvolvimento saudável e equitativo do karate. É um auxílio sobretudo na parte técnica do karate.
@V – Em termos técnicos, quais são os desafios?
CD – Cumprir com todas as provas aprovadas no plano de actividades; colocar Moçambique entre os três primeiros lugares da tabela final nos campeonatos do mundo; formar cinco árbitros internacionais e oito nacionais; formar quatro treinadores nacionais e oito de nível provincial. Estamos também a trabalhar no sentido de a federação ter instalações próprias a começar por espaços para praticar o karate, bem como uma sede.
A nível financeiro, a nossa maior luta neste momento é criar condições que tornem a nossa federação sustentável e encontrar parceiros fortes para que possam “comprar” as nossas actividades a 100%. Igualmente, temos desafios a nível social, em que queremos envolver o karate no combate contra o HIV-SIDA, a pobreza, a gravidez precoce, o abuso infantil e desenvolver campanhas de alfabetização.
@V – Quais são as regiões do país em que se pratica regularmente o karate?
CD – É um orgulho para mim dizer que temos o karate a nível nacional e nas 10 províncias do país. Esta é uma modalidade que existe também em alguns distritos, tais como Boane em Maputo; Tica, Nhamatanda, Dondo, Caia e Mafambisse, em Sofala; Gondola na província de Manica; Pebane, Mocuba, Nhamacura, Nicuadala, Gilé, Lugela e Gurúè, na Zambézia; Nacala, Angoche e Necudure, em Nampula e Metangula, em Niassa.
@V – Em termos de estilos?
CD – Na província de Maputo temos o Kimura Shukokai, Shukokai Karate-Do, Shito Ryu, Wado Ryu, Gojo Ryu, Shotokan, Joshi Mon e Gojo Ryu Okinawa; Kimura Shukokai, em Gaza; Kimura Shukokai e Shotokan, na província de Inhambane; Kimura Shukokai, Shotokan, Wado Ryu e Shito Ryu, em Sofala; Kimura Shukokai, nas províncias de Niassa, Zambézia, Tete e Cabo Delgado e, finalmente, na província de Nampula, Kimura Shukokai e Shotocan.
@V – Com este cenário todo pode-se dizer que o karate está num bom caminho?
CD – Pois. Tudo o que é feito é a pensar no futuro da modalidade com o que apelidamos de “grande” trabalho que estamos a fazer. Temos a esperança de que um dia chegaremos onde queremos.
O “edifício” da federação
@V – Como está a FMK?
CD – A federação está estável, apesar da existência de indivíduos de alguns estilos que estão a sabotar o trabalho da federação.
@V – Que indivíduos?
CD – Uns que não querem filiar os seus estilos na federação e colaborarem com o nosso trabalho tendo em vista o desenvolvimento conjunto do karate.
@V – E o que eles alegam?
CD – A razão desta sabotagem é unicamente o poder. Querem a presidência da federação. Entretanto, já estiveram a conduzir os destinos do karate em Moçambique por 13 anos e nada fizeram. Não realizaram sequer provas nacionais e a preocupação dessas pessoas era somente viajar para fora do país. Esses sabotadores não criaram e nunca se preocuparam com as associações provinciais e hoje que estabelecemos uma grande equipa de trabalho, querem destruí-las.
@V – Como estão os cofres da federação?
CD –A federação neste momento depende unicamente do orçamento do Estado através do Fundo de Promoção Desportiva (FPD), que é o nosso maior parceiro. Não temos ainda patrocinadores mas esperamos ter um meio para a sustentabilidade da federação.
@V – Quais têm sido as actividades desenvolvidas com recurso ao montante que recebem do Fundo de Promoção Desportiva?
CD – O Fundo de Promoção Desportiva (FPD) tem financiado as actividades principais da federação, tais como o pagamento da quota pela filiação de Moçambique na WKF, jornadas de karate, o Campeonato de Desenvolvimento, o Campeonato Nacional e a nossa participação em eventos internacionais.
@V – Em que nível estamos quanto às participações internacionais?
CD – O país participou na última competição da Zona VI, composta por oito países africanos em que ficou na segunda posição na tabela geral, atrás do Botswana. Somos actualmente os campeões do mundo de kimura shukokai na disciplina de kata individual em femininos; bicampeões mundiais em kata por equipas e individual em masculinos; campeões mundiais em kumité por equipas em femininos; vice-campeões mundiais na disciplina de kumité individual em femininos, em kata individual e ainda em kata individual para juniores.
@V – Qual é o segredo deste sucesso?
CD – Os títulos conquistados recentemente no Campeonato do Mundo de karate kimura shukokai são fruto de um longo trabalho feito a nível nacional desde 1999. É um trabalho de anos, fruto de um projecto a longo prazo cujos benefícios estamos a colher hoje.
@V – E como se tem olhado para esses campeões dentro do país?
CD – É lamentável o que acontece neste país. Os nossos campeões não têm prémios por isso e nem sequer são valorizados. Porém, esperamos que a política do Governo ou do Ministério da Juventude e Desportos mude nesse aspecto, porque temos o direito à honra por dignificar o país além-fronteiras.
@V – Há uma percepção quase generalizada de que o karate é um desporto que se associa à cultura oriental. Como é que nós conseguimos ser campeões?
CD – O karate é uma cultura oriental japonesa tal como referi, mas quando passa para o desporto aí todo o mundo a pratica. O seu desenvolvimento passa para o ocidente tornando-se comercial, daí surgirem os campeões de que se fala aqui. Se calhar os japoneses perdem a capacidade de a levar como desporto por se tratar de um acto cultural.
@V – O que é que orgulha Carlos Dias enquanto presidente da Federação Moçambicana de Karate?
CD – Sinto que ainda foi feito pouco por este elenco. Quero fazer muito mais. Orgulho-me de ter criado vice-campeões em um ano e meio, campeões regionais e ainda ter estabelecido quatro associações provinciais, bem como ter cumprido na íntegra as actividades desportivas previstas para o ano de 2011. Neste ano estou a 87% do cumprimento das actividades previstas, mas sei que ainda há muita coisa por fazer.
@V – Fala-se à boca pequena que o karate em Moçambique é uma modalidade para poucos, sobretudo para pessoas que estão no centro da cidade, ou seja, desporto para as elites. O que tem a dizer sobre isto?
CD – Não é verdade. Nós temos de mudar esta forma de pensar. O que torna esta modalidade de elite até pode ser o material desportivo que é de muito custo, mas é possível ultrapassar criando condições para tal, que é também a nossa luta neste momento.
@V – E qual tem sido o relacionamento com os media visto que a maior parte dos mesmos só publicita modalidades desportivas como o futebol?
CD – Em Moçambique ainda não há uma cultura desportiva muito forte. Os jornalistas desportivos moçambicanos pensam no futebol, basquetebol e ficam-se por aí. Não se interessam pelas modalidades individuais, mas um dia, quando se aperceberem de que estas modalidades têm muita matéria desportiva, o desporto moçambicano poderá crescer rapidamente, e ao nível que desejamos.
