António Mutoa é director executivo da Associação Nacional de Extensão Rural (AENA), uma organização que, para além de outras actividades, trabalha para a consolidação da cidadania e da democracia no Norte de Moçambique. Ao @Verdade abriu as portas para falar das acções desenvolvidas pela sua agremiação e fez uma radiografia do país. Da sua relação com o Governo, conclui que este é arrogante porque se fecha ao diálogo e há lacunas na governação, factos que retardam o desenvolvimento. No seu entender, as políticas traçadas pelo Executivo são desajustadas da realidade, razão pela qual não beneficiam a população.
(@Verdade) – O que é a AENA?
(António Mutoa) – A AENA é Associação Nacional de Extensão Rural. Ela é de âmbito nacional e foi fundada em 2006. Realizou a sua sexta assembleia ordinária no passado fim-de-semana, na qual se aprovou o primeiro plano estratégico.
(@V) – Quais são as áreas de actuação e os desafios da AENA?
(AM) – Nós trabalhamos para a consolidação da cidadania, democracia e para o desenvolvimento das comunidades, com maior enfoque para as mulheres das zonas rurais. Um dos maiores desafios da AENA é garantir a segurança alimentar e nutricional e melhorar a força económica dos produtores. A AENA quer ver cada vez mais produtores com a renda e a economia doméstica melhoradas. O outro é ver os recursos naturais a serem bem usados, geridos e governados, uma vez que constituem a herança comunitária. E um dos grandes pilares é ver a equidade de género efectivada.
(@V) – O que se pode esperar da AENA nos próximos três anos?
(AM) – No princípio trabalhávamos sem plano estratégico. Limitávamo-nos às três linhas anteriormente referidas. Aparecíamos como uma instituição que criava alianças entre a organização e as comunidades na transmissão de conhecimento de uma forma ad hoc. O plano ora aprovado vai-nos permitir trabalhar e ver nos próximos três anos qual é que será o nosso perfil. Queremos também profissionalizar-nos em três pilares essenciais, nomeadamente na melhoria das condições das comunidades e dos produtores para produzirem e terem mais rendimentos. Ainda queremos ver as comunidades a liderarem os seus processos de desenvolvimento na exploração sustentável dos recursos minerais e naturais. Queremos ver acautelada a questão da equidade de género.
(@V) – Com quantos projectos trabalha a AENA?
(AM) – Trabalhamos com o projecto de adaptação às mudanças climáticas, de geração de rendimento, de gestão sustentável de recursos naturais, água e saneamento e agricultura de conservação nas Ilhas Primeiras e Segundas, nos distritos de Angoche e Moma. Destes, é importante referir que o projecto sobre as mudanças climáticas é novo. Visa adaptar as nossas actividades às mudanças climáticas. Neste momento estamos a fazer um estudo nas comunidades para apurar como é que elas encaram o assunto sobre as mudanças climáticas e como elas podem ser meios importantes na discussão deste assunto.
(@V) – Em quantos distritos trabalham e como estão enraizados nas comunidades?
(AM) – Nas comunidades temos técnicos que estão a transmitir conhecimentos que achamos que o cidadão precisa de saber. Em termos de posicionamento, temos boas relações com os governos dos distritos onde trabalhamos. Se continuarmos assim vamos chegar longe porque o plano estratégico, com a duração de três anos, vai focalizar-se nessas e outras actividades que promovem a democracia e a cidadania. Estamos a trabalhar nas províncias da Zambézia, Cabo Delgado, Nampula e nos distritos de Pebane, Montepuez, Meconta, Moma e Angoche.
(@V) – Quantas pessoas neste momento beneficiam dos projectos da AENA?
(AM) – Há cerca de 150 mil beneficiários. O nosso maior desejo é desenvolvermos a cidadania para que cada moçambicano saiba que ele pertence a este país, cujas leis devem ser respeitadas e cumpridas. Cada cidadão deve saber exigir os seus direitos, saber eleger e ser eleito. ADD As políticas do Governo são muitas e boas, mas desajustadas da realidade
(@V) – Na sua visão, acha que as políticas que são aplicadas pelo Governo estão de acordo com as necessidades da população?
(AM) – Esta tem sido a grande preocupação da AENA. O problema não é de políticas, nós temos muitas políticas, elas até podem ser de alguma maneira boas, mas estão desajustadas da realidade. E mais, o maior problema é saber como essas políticas são implementadas e como é que é assegurada a sua implementação. Em algum momento a lei de minas opõe-se à lei da terra, mas como está a beneficiar de revisão esperamos ver que novidade vai trazer e que possa beneficiar a população. A lei de minas que existe até agora não está ajustada ao desenvolvimento que o país está a ter. Precisa de ser reformulada dando prioridade e ganhos à população para que consiga melhorar as suas vidas a partir da terra que lhe tem sido retirada.
(@V) – Como tem sido o trabalho da AENA na monitoria da exploração de recursos minerais sabendo que os exploradores são também pessoas ligadas à política moçambicana?
(AM) – Nós trabalhamos entre os interesses políticos e económicos. Os políticos confundem-se com os empresários. Este é um grande desafio. Porém, a AENA não vai parar. Lutará para que isto não venha a repercutir-se nos próximos tempos. Iremos monitorar esses processos de forma transparente. Sabemos e estamos conscientes de que um dia o país vai mudar. Estes últimos tempos, para mim como intelectual, são o princípio do fim. O Império de Roma, para quem leu, foi assim mas acabou-se dando a César o que era de César. E a consciencialização das comunidades hoje não é como ontem, há sempre reacções, então isso significa que é o princípio do fim.
(@V) – Com a monitoria da AENA, quais foram os ganhos que a população obteve nesses anos na área da exploração mineira?
(AM) – Continuamos a preparar as comunidades, mas difícil é medir os benefícios. Na prática, as populações ainda não começaram a colher os benefícios da exploração mineira porque o Governo não quer abrir a mão. A nossa luta é fazer com que esses recursos no futuro possam beneficiar as comunidades. É preparar as comunidades para elas sozinhas perceberem que têm direitos sobre esses recursos. Os megaprojectos trazem maquinaria de ponta e o nível de escolaridade da nossa comunidade é incompatível. O que estamos a dizer é que temos que encontrar formas de adequar esse desenvolvimento, essas explorações mineiras a novos modelos e à nova realidade, de uma maneira que não haja fintas. Que os benefícios sejam divididos junto das comunidades para desenvolverem as suas capacidades económicas e financeiras.
(@V) A AENA tem trabalhado com as comunidades retiradas das zonas onde está implantado o megaprojecto das areias pesadas de Moma. Qual é o tratamento que a população recebe nesse lugar?
(AM) – A implantação do primeiro projecto das areias pesadas em Moma não resolveu os grandes problemas que devia resolver. Antes da abertura de um novo projecto devia-se ter reflectido sobre até que ponto serão acautelados os direitos das comunidades. Não vamos impedir o desenvolvimento, porém, o que estamos a dizer é que esse desenvolvimento deve ser sustentável. A Kenmare e o Governo devem mudar de estratégias de modo que as comunidades sejam beneficiadas e que o meio ambiente seja acautelado. Por exemplo, em Topuito desde que começou a exploração, em 2007, não estão a ser regeneradas as dunas. Eu acho que a população abrangida pelos projectos deveria ser accionista nas empresas.
(@V) – E os outros projectos de exploração de pedras preciosas?
(AM) – Há quem pense que a AENA está somente preocupada com a Kenmare, mas nós trabalhamos com todas empresas, todos aqueles que exploram recursos naturais, as comunidades e os garimpeiros. Trabalhamos com as comunidades, por exemplo o caso de Mavuco, nós estamos lá a trabalhar junto das comunidades, queremos que, cada vez mais, haja uma exploração regrada baseada no desenvolvimento. Não estamos a dizer que a exploração é negativa, mas deve ser observada a protecção ambiental, social e económica. É isso que queremos e a nossa luta é influenciar as autoridades governamentais, as empresas, os garimpeiros e a população de modo a explorarem os recursos de maneira sustentável. ADD Sou persona non grata
(@V) – Alguma vez a AENA sofreu algum tipo de intimidação devido ao seu trabalho?
(AM) – A AENA como instituição ainda não recebeu ameaças, mas eu, na qualidade de director executivo e como pessoa e activista, sou persona non grata. Sou visto como extremista. O que eu advogo é o direito da comunidade, de todo aquele que defende os direitos das pessoas marginalizadas e que está sujeito à exclusão. Em todo o mundo é assim, mas eu compreendo isso porque o mais importante é a minha integridade. Sou uma pessoa íntegra e activista internacional da sociedade civil. Quando alguém me repele está a tornar-me mais forte, eu nunca vou vacilar porque tenho um caminho a seguir e sou íntegro no que faço. Nunca me senti assustado porque sei o que quero, que os direitos humanos e os interesses dos mais pobres sejam salvaguardados.
(@V) – O que falta nos dirigentes e na população moçambicana?
(MA) – Falta o espírito de cidadania, quer por parte da população assim como dos governantes. Falta o espírito que nos faz sentir que este país é nosso. Se fui eleito para governar, devo governar para o bem do povo.
(@V) – O que orgulha a AENA ao longo dos seis anos da sua existência?
(MA) – A melhoria de tecnologia. Hoje, nas zonas onde a AENA opera pode-se encontrar que a noção de agricultura de conservação e de valorização do empreendedorismo feminino, casos de Moma e Angoche, já ficou na população. A AENA aparece como um interlocutor válido das comunidades e este é um dos grandes ganhos para a AENA.
(@V) – Se cessassem o vosso trabalho hoje, com que recordações a AENA ficaria?
(MA) – Os negócios que montámos nos 20 grupos de mulheres em Moma e em Angoche. Ajudámo-las a montarem negócios e se nós fecharmos as portas hoje elas vão continuar a ganhar dinheiro. Também a agricultura de conservação que nós estamos a introduzir em todos nossos programas e nos distritos onde trabalhamos. Soubemos que sem a AENA as comunidades vão produzir, respeitando o meio ambiente. Isso alegra-nos, mas ainda não estamos felizes, razão pela qual implementámos um plano estratégico de modo a consolidar as nossas actividades.
(@V) – Todos os projectos nos últimos tempos estão virados para o empoderamento da mulher. Como é que a AENA olha para a questão de género nos seus programas?
(AM) – Nós estamos a quebrar o tabu. Antigamente em Moma e Angoche, as mulheres não podiam fazer negócio. Hoje esse mito já está ultrapassado e alguns homens ajudam as mulheres na melhoria das actividades económicas. Por isso, que desde que começámos o projecto há dois anos, já não há problemas entre o marido e a mulher, afinal de contas os maridos apoiam, e algumas mulheres são esposas de pescadores, são eles que ajudam as suas esposas a conseguir o peixe e a fazer negócio.
(@V) – Verifica-se uma exploração desenfreada de madeiras nas províncias onde a AENA trabalha, particularmente em Cabo Delgado, Nampula e Zambézia. Qual é o trabalho nesta área?
(AM) – É advogar. Nós queremos influenciar o Governo para que os recursos naturais beneficiem cada vez mais as comunidades. O nosso plano estratégico vai focalizar estas áreas nos próximos três anos.
(@V) – Em que consiste a educação sustentável?
(AM) – Queremos influenciar o Governo a envolver as comunidades nas discussões do processo de concessão da terra. A comunidade deve ter espaço para negociar as suas terras dentro da própria área de exploração. Quando nós chegarmos a este nível, vamos sentir que as comunidades são respeitadas e as empresas de exploração e as comunidades sairão todas a ganhar. Queremos que as comunidades consigam falar por si, que as terras são suas riquezas e é nelas onde existe a sua, pelo que não podem aceitar serem retiradas delas sem nenhum benefício. Queremos que o Governo e os responsáveis das empresas ou megaprojectos saibam respeitar as comunidades. As comunidades devem saber discutir sozinhas sem que haja intervenção da sociedade civil. Mas não queremos que elas peguem nas armas, mas que usem a força da inteligência para discutir e ganhar razão. ADD As comunidades não têm informação sobre os benefícios da exploração florestal.
(@V) – Que avaliação faz dos 20 porcento do montante resultante da exploração florestal?
(AM) – Eu ainda questiono: são 20 porcento de quê? Não existe informação para as comunidades em relação aos 20 porcento provenientes da exploração madeireira. Deveria acontecer o contrário e os exploradores madeireiros ganharam tanto com o valor destinado a servir a população.
(@V) – O que acha da divisão de riquezas em Moçambique?
(AM) – A divisão da riqueza ou bens em Moçambique é irrisória, quase que não existe. Na verdade, a distribuição da riqueza não é equitativa, há muitas lacunas, há muita pobreza, exactamente por causa da corrupção e do divisionismo. Nós temos recursos que, se fossem explorados de forma sustentável, as empresas que já estão a operar contribuiriam significativamente para a balança de pagamento, sairíamos da pobreza e da dependência da ajuda externa. Mas tudo isso não é culpa das multinacionais, mas sim da má governação aliada à corrupção.
(@V) – As ONG’s e a população não conseguem persuadir o Governo a agir com zelo no processo de divisão de riquezas?
(AM) – Nós somos um país do terceiro mundo. Em algum momento até não é vontade do Governo, são imposições dos grandes financiadores como o Banco Mundial. E como o país é pobre, o Governo acaba por envolver-se, às vezes, em coisas não sustentáveis. Deve entender que por causa da corrupção e conflitos de interesse, há coisas que não conseguimos responder nem resolver em benefício da população. Há problemas de falta de diálogo entre as organizações políticas, não há abertura política que possa sustentar o desenvolvimento, há exclusão social, económica e política, o que se reflecte na má governação. Isso é uma ameaça para o crescimento deste país, é uma ameaça para os doadores, é uma ameaça para o próprio cidadão.
(@V) – Está a querer dizer que existem lacunas na governação do país?
(AM) – Há muitas lacunas, e graves. O problema do Governo moçambicano é ser arrogante, não quer ouvir. Tem de abrir espaço para auscultar os outros. Se tu queres governar bem, tens de saber ouvir. Como o nosso Governo se confunde com o partido, é difícil. As lacunas são maiores, pois não há diálogo, não podemos menosprezar os políticos que existem porque são eles que auxiliam o Governo. Enquanto existir esta exclusão política não haverá desenvolvimento nenhum, nem divisão de riquezas para benefício de todos. Quando há uma lacuna política, as coisas vão de mal a pior e com a cabeça virada para baixo. É um punhado de pessoas que beneficia das riquezas deste país.
(@V) – Qual é a sua opinião em relação ao ano 2012 e às realizações do elenco do edil de Nampula?
(AM) – Foi um autêntico fracasso. Há reclamações vindas de todos os lados. O que se disse no manifesto eleitoral não é o que está a acontecer. Eu, como munícipe da cidade de Nampula, sinto que se vive um caos nesta cidade. Ainda há muita coisa por ser resolvida. Ainda continuamos com o problema de falta de água potável, a cidade está toda esburacada, os bairros não têm iluminação e os serviços básicos ainda deixam muito a desejar.
