A Índia é o quarto país mais perigoso para as mulheres, mas a prática generalizada de abortar selectivamente os fetos femininos pode convertê-lo no mais hostil para elas.
No Estado de Uttarakhand, no Himalaia, onde, para a população infantil entre zero e seis anos de idade, a relação caiu de 886 meninas para cada mil homens – segundo dados provisórios do Censo 2011 –, consolida- se um forte movimento da sociedade civil contra os abortos selectivos.
Os antecedentes desse Estado são muito piores do que a proporção nacional, que caiu para 914 meninas para cada mil meninos, em comparação com as 927/1000 no último censo, de 2001. Os demógrafos extrapolam que, se no censo de 2001 “faltavam” seis milhões de meninas, a cifra aumentou para 7,1 milhões este ano.
“A tecnologia e a alfabetização tiveram um papel na promoção do aborto selectivo de fetos femininos, como ocorreu com a falta de princípios e de ética na profissão médica”, disse Shashi Bhushan, da Shri Bhuvaneshwari Mahila Ashram (SBMA), uma organização não-governamental que ajuda a proteger os direitos das mulheres.
Bhushan referia-se à proliferação de clínicas ilegais de determinação do sexo utilizando equipamentos baratos de ultra- -som em todo o Uttarakhand, que são patrocinadas por pessoas educadas. Rahmati Devi, de 45 anos, é “dai” (assistente tradicional de partos) no distrito de Nainital, e afirma que os exames de determinação do sexo que usam imagens obtidas por ecografias agora são rotina nas aldeias do norte de Uttarakhand.
“Estes exames acontecerão sempre pela pressão do marido ou de membros de sua família”, disse Devi. “Os endereços dos centros que fazem esses exames clandestinos são passados boca a boca”, e os estabelecimentos cobram entre 52 e 105 dólares para realizá-lo, acrescentou.
Os comités de controlo criados na Lei de Técnicas de Diagnóstico de Pré-Concepção e Pré- -Natal, que proíbem os exames de determinação do sexo, não estão activos na maioria dos distritos de Uttarakhand, salvo por vistorias esporádicas em clínicas suspeitas de realizarem tais procedimentos ilegalmente.
A SBMA realiza uma campanha há três anos para consciencializar as pessoas contra esta prática, dentro do programa Kopal (Içar). Com o apoio da Plan International e outras 13 organizações não-governamentais, a entidade centra-se em temas como os efeitos físicos e psicológicos adversos sobre as mulheres que sofrem abortos para eliminar os fetos femininos.
Quando Madan Singh e a sua mulher, Radha Devi, em Rampur, no distrito de Chamoli, consideravam realizar um exame para determinar o sexo do seu bebé para evitar ter uma terceira filha, um trabalho de rua na sua aldeia, do projecto Kopal, convenceu-os a não fazê-lo. Estes êxitos incentivam activistas como Bhushan.
“No nosso trabalho com organizações comunitárias e juvenis também vimos um aumento no registo de nascimentos e nos partos feitos no contexto institucional”, afirmou.
Bhushan acredita que Estados como Uttarakhand começam a despertar para a enormidade do problema. “O que se descreve como ‘falta de meninas’ equivale a assassinato em massa de meninas, ou feminicídio”, afirmou.
Reconhecendo que as atitudes sãs em relação às meninas devem começar cedo, a iniciativa Kopal inclui mobilizar grupos de jovens para que sensibilizem os seus pares e os idosos sobre o papel vital das meninas em qualquer comunidade equilibrada.
“O dote continua a ser um factor poderoso para não ter filhas. Uma família com mais homens considera-se forte, e os filhos varões são vistos como bens”, afirmou a trabalhadora social Bina Kala, de 35 anos, da aldeia de Anjanisain, no distrito de Tehri. Sob o contexto do Kopal, Bina ajuda a organizar os “fóruns das crianças da montanha”, que dão oportunidade para que grupos de meninos e meninas debatam sobre as relações de género.
“Nessas reuniões enfatizamos que nas famílias rurais a menina contribui com a economia familiar muito mais do que o menino. Ela ajuda a mãe nas tarefas domésticas e inclusive sacrifica os seus sonhos para que a família possa investir nos irmãos”, disse Bina.
As ameaças à saúde e às atitudes culturais em relação às mulheres foram factores mencionados numa pesquisa feita pelo TrustLaw, um serviço de notícias administrado pela Thomson Reuters Foundation, que em Junho qualificou a Índia como o quarto país mais perigoso do mundo para as mulheres, depois de Afeganistão, Congo e Paquistão.
Numa reunião do Kopal realizada no começo deste ano no distrito de Pithoragarh, várias meninas queixaram-se de que, apesar de cada vez haver mais educação e alfabetização, pouco mudou no seu status nas aldeias de Uttarkhand.
Nessa ocasião, “os meninos responderam jurando que quando voltarem para as suas aldeias serão mais sensíveis com as suas irmãs e outras meninas”, disse Bina. Noutro encontro, no distrito de Haridwar, Sonia, adolescente de 17 anos, manifestou-se totalmente contra os abortos selectivos.
“Reunimo-nos regularmente e discutimos como superar a falha do género. A nossa mensagem é que se deve ouvir as meninas, e que elas têm direito a um tratamento igualitário”, disse Sonia, que quase abandonou a escola, mas agora continua os estudos com o apoio da SBMA.
Este tipo de iniciativa da sociedade civil é apoiado por programas dos governos estaduais criados para potencializar o valor das meninas perante a comunidade.
Há três anos, o governo de Uttarakhand anunciou o Programa Nanda Devi para Meninas, pelo qual para cada menina nascida depois de Janeiro de 2009 em famílias que vivem abaixo da linha de pobreza corresponde um depósito fixo de 105 dólares que pode ser retirado quando a beneficiária completar 18 anos e tiver terminado o ensino secundário.
“Esses programas são lentos, mas, sem dúvidas, conseguem uma mudança numa sociedade onde o desejo de ter um herdeiro homem é um assunto social complexo”, disse Bhushan.