A discriminação contra pessoas deficientes em Moçambique ainda é um facto. Ela é visível em quase todos os locais e em diversos sectores de actividade, desde as infra-estruturas como prédios, até aos serviços públicos de transporte onde, por exemplo, é notória a falta de plataformas que garantem o acesso desta camada social aos autocarros.
Contudo, e apesar deste cenário, são deficientes, os desamparados de costume, que à semelhança do que fazia Maria de Lurdes Mutola, através do atletismo, orgulham e elevam o nome do país além-fronteiras.
Nesta edição, trazemos ao caro leitor uma entrevista que nos foi concedida por Jorge Bai-Bai, presidente da Federação Moçambicana dos Desportos para Pessoas Portadoras de Deficiência (FMDPPD), que considera que o governo moçambicano é o primeiro a discriminar os desportistas deficientes em Moçambique.
@Verdade – Qual é o estado actual do desporto para pessoas deficientes no país?
Jorge Bai-bai – Tendo em conta os resultados desportivos, é saudável. Mas também se pode dizer que não, a julgar pelos inúmeros obstáculos que temos.
@V – Quais obstáculos?
JB – Porque somos uma federação sem identidade própria. Aliás, esse é princípio de todos os problemas.
@V – Quando fala de falta de identidade, a que se refere exactamente?
JB – Infelizmente, somos ainda uma federação não legitimada, ou seja, legalmente, não existimos, pelo que não podemos desenvolver com solidez as nossas actividades.
@V – Que actividades?
JB – Ir atrás de patrocínios, sobretudo. Quando procuramos parceiros, é necessário ter os documentos que nos identificam, algo que a nossa federação não tem, recorrendo apenas a uma credencial emitida pelo Ministério da Juventude e Desportos. Recentemente, em Londres, só para citar um exemplo concreto, tivemos contacto com duas instituições que lidam com o desporto para pessoas deficientes que manifestaram vontade de nos apoiar, todavia, não pudemos dar passos significativos porque não existimos, legalmente. Perdemos a oportunidade de firmar uma parceira.
@V – Há saída para tal?
JB – Ainda a 20 de Agosto último, aquando da despedida da delegação paraolímpica, expusemos este caso ao Primeiro-Ministro, tendo ele prometido que assim que voltássemos já teríamos os documentos de registo, ou seja, teríamos a nossa condição de federação legalizada. Voltámos e continuamos assim, a funcionar sem um alvará do Ministério da Justiça.
@V – O que estará por detrás dessa situação?
JB – O Processo foi entregue em Dezembro de 2010, nove meses após a nossa reorganização como federação. Em 2011 contactei o Ministério da Justiça e soube informalmente que o Ministério da Juventude e Desportos (MJD) mandou vetar a legalização de associações desportivas.
@V – Associações desportivas ou federações?
JB – Fiz a mesma pergunta e não obtive resposta. Porém, em 2011, foi legalizado um leque de federações e, mais uma vez, fomos preteridos. Não sabemos porquê.
@V – E qual foi a posição do Ministério da Juventude e Desportos?
JB – Foi o MJD quem disse para não se aprovar qualquer que fosse a federação naquela altura. Esse mesmo ministério propôs que a federação se registasse como um clube, mas para tal tínhamos de nos reunir em assembleia-geral para tomar uma decisão.
Mais, quisemos saber a quem nos filiaríamos caso nos registássemos como clube, e mais uma vez não nos responderam. Por isso decidimos não avançar com o registo.
@V – Após a audiência que mantiveram com o Primeiro-Ministro, na qual expuseram essa preocupação, o que é que aconteceu?
JB – Falámos com o Primeiro-Ministro na presença do ministro da Juventude e Desportos, do director nacional dos Desportos e do director do Instituto Nacional dos Desportos. A mensagem do Primeiro-Ministro foi ouvida pelos dirigentes da área do desporto e certamente ignoraram-na porque até hoje ainda não aconteceu nada.
@V – Para que serviria a legalização da federação, tendo em conta que os atletas têm competido?
JB – Queremos uma autonomia administrativa e financeira. Não só, queremos ser uma federação para podermos fazer parte das diversas instituições desportivas internacionais e participar em campeonatos mundiais, como de atletismo e futebol para pessoas deficientes.
Enquanto não estivermos legalizados, não podemos emitir documentos oficiais, ter contas bancárias institucionais. Todo o tipo de apoio canalizado a nós tem de ser em numerário, o que é muito complicado.
Antes de nos constituirmos em federação, legalizada, não podemos receber apoio técnico na componente da formação de modo a enquadrarmo-nos nos padrões internacionais do desporto para deficientes e os nossos atletas não podem ter acesso a bolsas para o estrangeiro.
@V – O que lhe parece isso tudo?
JB – Tudo leva-nos a crer que o Governo pretende eliminar-nos ao não oficializar a nossa federação. E pergunto: Será que as federações existentes no país bastam?
@V – Acha que tem algo a ver com discriminação?
JB – Sim!
@V – Há projectos que dependem da legalização da federação?
JB – São vários, dentre os quais a participação em competições internacionais que visam elevar o ranking dos nossos atletas. A primeira irá decorrer em Março, em Angola, e a segunda, o Campeonato Mundial de França, em Julho. Temos também o Campeonato Mundial de Futebol dos Amputados, em Novembro, para o qual recebemos um convite, sendo um dos critérios a existência de uma federação legalizada pelo seu próprio Governo.
@V – Tendo em conta que ainda não existe uma federação de desportos para pessoas deficientes, como é que o país consegue levar atletas a eventos internacionais?
JB – É graças à Missão Moçambique. Para os Jogos Paraolímpicos, temos o próprio Comité Paraolímpico de Moçambique. Mas importa frisar que nós não podemos participar nos vários campeonatos mundiais de modalidades desportivas para pessoas deficientes porque não somos ainda uma federação legal.
Não podemos fazer parte de organismos internacionais. Nos eventos da lusofonia, como o Jogos da CPLP, temos participado por convite, uma vez que somos internacionalmente reconhecidos e pelo facto de os mesmos não terem a chancela da Federação Internacional de Atletismo.
@V – E como está a saúde da federação?
JB – Deficitária.
@V – Porquê?
JB – Não funcionamos devidamente e tudo parte do que referi anteriormente, ou seja, a falta de fundos e patrocínios e a não legalização da federação.
@V – Desenvolvem alguma actividade nas províncias?
JB – Temos alguns movimentos provinciais que têm massificado este tipo de desporto, mas não temos dados.
@V – Como é possível uma federação não possuir dados dos seus filiados?
JB – Temos sérios problemas de comunicação e de recursos humanos. Não temos sequer um telefone que nos permita manter contacto com as províncias, não temos internet. O pouco pessoal de que dispomos não pode deslocar-se às províncias por falta de fundos.
@V – Não tem um fundo para, no mínimo, desenvolver actividades do género?
JB – Este ano, todo o fundo foi alocado a actividades inseridas na preparação dos atletas que iriam participar nos Jogos Paraolímpicos. Noutros anos, o dinheiro destina-se à nossa participação em eventos internacionais e alguns nacionais.
@V – E do Fundo de Promoção Desportiva (FPD) recebem algum valor?
JB – Sim.
@V – De quanto?
JB – Só neste ano recebemos um milhão de meticais.
@V – E foi suficiente?
JB – É óbvio que não. Coube apenas para preparar os nossos atletas para os Meetings da Tunísia e Portugal, qualificativos para os Jogos Paraolímpicos.
@V – E que actividades a federação não pôde realizar devido à falta de fundos?
JB – Não realizámos, neste ano, o Campeonato Nacional de Atletismo e não conseguimos formar os classificadores médico-desportivos. Igualmente, não conseguimos cumprir o plano de actividades traçado para o presente ano, no qual estavam previstas visitas de monitoria às províncias, a formação de dirigentes desportivos e árbitros.
@V – Queixou-se da falta de patrocínios e de apoio. Contam com algum parceiro?
JB – Neste momento contamos com um amigo. É ele que nos sustenta e que vai ao mercado à procura de patrocinadores. É graças a ele que hoje trabalhamos com a Petromoc e com a Kudumba, que apoiam a nossa participação em eventos internacionais e ainda organiza os nacionais. Refiro-me à Autoridade Tributária.
Historial da Federação
@V – Quando é constituída a federação? JB – A federação foi constituída em Agosto de 2005 e reorganizada numa assembleia-geral, que decorreu no dia 19 de Março de 2010.
@V – Reorganizada?
JB – Constituída em assembleia-geral, a federação funcionou durante três anos até ao período em que fomos obrigados a transformá-la em Comité Paraolímpico. Contudo, houve dissidências que nos puseram à beira do colapso. Alguns quiseram criar um comité paralelo.
Não trabalhámos e foi criada pelo Governo uma comissão de gestão enquanto se buscavam soluções. Por imposição do Governo, através do Conselho Nacional dos Desportos, em 2010, recriámos a Federação Moçambicana dos Desportos para Pessoas Portadoras de Deficiência.
@V – E quais são as vossas competências como federação que lida com o desporto para pessoas deficientes?
JB – São principais actividades da federação a organização e realização de campeonatos nacionais e regionais, e a formação de todos os profissionais nacionais e regionais ligados ao desporto para deficientes. Temos também a componente de desporto de lazer, terapêutico e pedagógico.
Radiografia
@V – De lá (2006) a esta parte, quais foram as actividades organizadas pela federação?
JB – Em Maio de 2006 organizámos e realizámos o primeiro festival do Desporto para pessoas deficientes na cidade da Beira, onde estiveram envolvidas três províncias em três modalidades nomeadamente, basquetebol, andebol e futsal.
No ano seguinte tivemos uma formação de técnicos e dirigentes nacionais ligados ao desporto para deficientes em Maputo, orientada por técnicos da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas Portadoras de Deficiência.
Em 2008, decidimos que o nosso desporto prioritário seria o atletismo. No mesmo ano, organizámos a primeira edição do Campeonato Nacional de Atletismo para os cegos, que contou com a participação de 33 atletas em representação de quatro províncias.
Os problemas que tivemos, enquanto Comité Paraolímpico, em 2009, levaram-nos a não organizar nenhum evento. Aliás, enquanto comité, nós não desenvolvemos nenhum tipo de actividade, uma vez que o campeonato nacional foi organizado antes da constituição daquela entidade.
Em 2010, quando reconstituímos a federação, lançámos a 2ª edição do campeonato nacional que decorreu no mesmo ano e que contou com a participação de cinco províncias e 18 atletas. Já em 2011, por imposições financeiras, não organizámos nenhum evento. Este ano, devido à nossa participação nos Jogos Paraolímpicos, não teremos nenhuma competição, infelizmente.
Participações internacionais
@V – Em quantos eventos internacionais já participaram? E quais?
JB – Em 2010 participámos pela primeira vez nos Jogos da CPLP que decorreram em Maputo. Fomos representados por dois atletas e obtivemos uma medalha de ouro, igual número de prata e quatro de bronze. Ainda em 2010, já na Taça Lwini, ou seja, no Festival Internacional de Desporto para Deficientes, que decorreu em Angola, participámos com um atleta que conquistou uma medalha de ouro.
No mesmo ano, fomos aos jogos da Scasa, na Suazilândia, nos quais conquistámos duas medalhas de prata e uma de bronze.
Já em 2011, tomámos parte nos Jogos Africanos de Maputo e conquistámos uma medalha. Fomos novamente a Luanda com dois atletas e conseguimos duas medalhas de prata.
No presente ano fomos primeiro ao Meeting da Tunísia, onde conquistámos duas medalhas de prata e dois mínimos para os Jogos Paraolímpicos. Ainda fomos a Portugal obter três mínimos para chegar a Londres.
Em Mafra, Portugal, participámos nos jogos da CPLP e conquistámos duas medalhas de ouro, três de prata e quatro de bronze. Nos Jogos Paraolímpicos de Londres conquistámos o topo do ranking feminino africano de T-12, graças a Maria Muchavo.
@V – Todas as medalhas foram obtidas somente na modalidade de atletismo? JB – Sim, como ficou decidido em 2008.
@V – Na Tunísia e em Portugal, o país conseguiu qualificar cinco atletas para os Jogos Paraolímpicos de Londres mas, chegada a hora, apenas dois é que embarcaram.
JB – Tudo por culpa do Comité Paraolímpico que inscreveu os atletas muito antes dos mesmos conseguirem os mínimos, e nem sequer informou a federação. Os restantes, apesar de terem sido inscritos, não obtiveram os mínimos, daí que só dois atletas é que foram para Londres.
@V – Como é que a federação não teve conhecimento da inscrição dos atletas?
JB – Tudo aconteceu em segredo. Só soubemos da composição da delegação no dia 7 de Agosto.
@V – O Comité Paraolímpico diz que a exclusão dos restantes atletas na ida à Londres se deveu à falta de fundos. Confirma?
JB – Isso soube mais tarde, e já em Londres.
@V – Acha isso justo?
JB – Foi uma simples e manifesta atitude de má-fé do Comité Paraolímpico, que não só deixou de fazer o seu trabalho, como interferiu no nosso no acto da inscrição.
@V – E como tem sido a relação entre a federação e o Comité Paraolímpico?
JB – Essa instituição só serve apenas quando o assunto é sobre as viagens. Nunca ajuda na preparação dos atletas, nunca apoia a nossa participação em eventos internacionais. Na verdade, esse organismo só quer tirar proveito do nosso trabalho.
@V – O senhor fez parte da delegação que esteve em Londres. Por quem mais ela foi composta?
JB – Por dois atletas, um guia e um treinador. Fizeram também parte da delegação o médico, o assistente administrativo, o chefe da Missão Moçambique, a presidente do Comité Paraolímpico e o seu acompanhante.
@V – Quais são os projectos que a federação tem em manga para o futuro?
JB – Lutar pela legalização da mesma. Mas antes vamos realizar a nossa assembleia-geral para eleger os novos órgãos, quer da federação, quer do Comité Paraolímpico, para permitir que o desporto para deficientes se desenvolva. continuação
