Finais da década 50, início da de 60. O Magagaga (como era conhecido), dando espaço a algum atrevimento, deixou a Mafalala para trás e decidiu demonstrar as suas qualidades no recém-inaugurado estádio do Desportivo de Lourenço Marques. Na companhia de outros candidatos a craques, treinou numa animada peladinha, mas não convenceu os técnicos. O Desportivo era o seu clube, mas… o que fazer? Pulou o muro e realizou testes no rival e vizinho Sporting. Pegou de estaca.
A partir daí, foi sempre a subir, tendo jogado na selecção de Lourenço Marques, ainda com a idade de júnior.
Da polémica transferência de uma filial do Sporting para o rival Benfica de Lisboa, já muito se disse. Dos “nacos” mais importantes dessa contratação, importa contar dois episódios:
– Eusébio tinha dado a palavra à querida mãe de que respeitaria a sua primeira opção que era jogar pelo Benfica. Hilário da Conceição, grande amigo e oriundo também da Mafalala, veio expressamente de Lisboa à então Lourenço Marques, para tentar o “volte-face”, acompanhado de dirigentes “leoninos”.
Sobre a mesa foram colocados, em notas, nada mais e nada menos que 500 contos. Uma verdadeira fortuna na época. Tudo entre quatro paredes. Bastava colocar a assinatura, que as notas lhe passariam para as mãos. Eusébio não assinou.
Respeitou a promessa feita à mãe, apesar de a oferta do Benfica ser bem inferior.
– Depois da citada “novela”, os “leões” de Lisboa tudo fizeram para segurar o jovem Eusébio, cujas referências eram muito fortes. Mas na altura os melhores de Moçambique, em regra, singravam em Portugal. Daí a “rendição” do Sporting, consubstanciada por um eminente dirigente de então, dizendo: “deixem lá. Pretinhos como aquele há por lá aos pontapés”. Enganou-se redondamente – dizemos nós!
E a transferência aconteceu. Diz Eusébio que chegou a Lisboa com um “fatito” da Saratoga, nada quente, e o Inverno rigoroso da Europa deu-lhe vontade de regressar. Chegou a escrever uma carta para a mãe, dizendo que não iria aguentar viver muito tempo na terra dos “mulungos”.
Coluna, já nessa altura figura de proa no Benfica, teve um papel decisivo. O resto…
Uma dádiva dos céus
Eusébio conta que assistiu a um treino do Benfica, a caminho de ser campeão europeu, e disse para o colega que até então “comia banco”, o José Torres: “o Benfica é só isto? Tenho a certeza de que nesta equipa eu jogo. Torres engoliu em seco e, ao jantar, foi dizendo: “vejam lá este recém-chegado macaquinho. Diz que tem lugar na 1.ª equipa do Benfica. Eu, que estou há mais tempo e até me farto de treinar, ainda não consegui nem ser suplente”.
Mas a verdade é que Eusébio, logo no primeiro treino, colocou o técnico húngaro Bella Gutman de joelhos, virado para o céu, a agradecer a oferta divina de um ponta de lança cuja qualidade nunca tinha visto.
Para além de Coluna, o Benfica tinha também Costa Pereira, originário de Moçambique. Após o citado treino e já nos balneários, foi esta a declaração do então guarda-redes do Benfica: “amigos, prestem atenção. Um de vocês fica desempregado porque o miúdo Eusébio vai ser titular. Eu sinto-me confortável porque ele não parece ter queda para a baliza”.
A profecia cumpriu-se. O sacrificado foi o avançado angolano Joaquim Santana.
Celebrar Eusébio
A vida do Pantera Negra foi de uma actuação nos limites. Quase tudo pela medida grande. Homem de grandes emoções, detestava viajar de avião, mas acabou por se habituar. Gostava do seu “digestivo”, mas acabou por restringi-lo ao máximo, por recomendação médica. Até as emoções lhe passaram a ser poupadas, a partir do início da debilitação da sua saúde.
Porém, a vida deste conterrâneo é para ser celebrada. Marcou mais de 700 golos em idêntico número de jogos. Chorou, riu, emocionou-se, aprendeu línguas, viajou pelo mundo, foi pai de duas encantadoras (hoje) senhoras, teve uma esposa sempre ao lado e pelo menos um neto varão.
Morreu aos 71 anos, quando todos esperávamos tê-lo por mais tempo. O choque foi muito grande. Para os portugueses, para os moçambicanos e para o planeta.
Agora pergunto: apesar de já não pertencer ao mundo dos vivos, nós, que há pouco menos de 40 anos recuperámos a nossa identidade, não temos a obrigação e o direito de “resgatar” um pouco do “nosso” Eusébio?
Diz-se que o Pantera Negra pouco fez para se identificar com esta pátria que o fez nascer. E nós? Será que fizemos tudo o que tínhamos de fazer para ele se sentir nosso?
O Marechal e o “King”
Foi um privilégio, como jornalista, cobrir a audiência que o Presidente Samora Machel concedeu a Eusébio, na sua primeira visita ao país, após a Independência.
– Eusébio, como te sentes ao regressar à tua terra libertada? – perguntou o Marechal.
– Feliz, muito feliz – reagiu a Pantera.
Seguiram-se momentos de recordações ímpares, com a língua ronga a “baralhar” um pouco os jornalistas portugueses presentes, num diálogo digno de registo.
A certa altura, referiu o Presidente Samora: “quando eu estava na guerrilha, o Presidente da Coreia do Norte, Kim Il Sung, disse-me: – Ó Samora, ganha lá essa guerra aos colonialistas, para tirares da selecção de Portugal o Coluna e o Eusébio. Imagina que humilharam a minha equipa, que, após estar a vencer por 3-0, acabou por perder por 3-5, com quatro golos de Eusébio”!
O Pantera Negra, nessa hora estava cor-de-rosa. Não sabia em que posição ficava, se cruzava ou descruzava as pernas, ao ponto de ter pontapeado e partido o cálice de champanhe que tinha à sua frente. Isso ocasionou um comentário do Marechal:
– Eusébio. Mostraste que estás em forma. O copo partiu-se à primeira. Fica tranquilo. Na nossa tradição africana, é sinal de sorte.
Duas historietas com o “King”
– Fui em missão de serviço a Portugal, e o “King” prometera-me um grande entrevista. Fiquei hospedado numa pensão na zona do Marquês de Pombal, em Lisboa e todas as tentativas de falar com Eusébio não resultaram. Deixei uma mensagem no seu telefone, na caixa electrónica. O mesmo havia feito relativamente a outros dois compatriotas que jogavam em Portugal, naturalmente de tanta notoriedade: Nito e Chiquinho Conde.
O que aconteceu foi que na minha ausência, os três deslocaram-se à minha procura, na pensão onde eu estava hospedado. À noite, no meu regresso, os empregados estavam curiosos em saber quem era o “famoso” hóspede do quarto 23. Disseram-me então: primeiro, veio um rapazito que é defesa do Estrela da Amadora, o Nito, à sua procura. Após isso, o Chiquinho Conde do Sporting, que até distribuiu autógrafos. Mas, ao princípio da noite, o Eusébio??? Afinal que é o senhor?
– Fui com o Eusébio jantar ao Restaurante “A Paz”, no largo do mesmo nome. O “King” acabou por me dar uma boleia no regresso à casa onde estava instalado, num pequeno carro que era da esposa. No meio do frio, nevoeiro, volante à esquerda, ultrapassagens, “pé pesado” da lenda do Benfica, eu estava apavorado. A viagem parecia durar horas, mas logo me tranquilizei. Pensei assim: “se eu morrer num acidente agora, pelo menos serei imortalizado por estar ao lado do… “King”!