Estimado leitor, na cavaqueira que se segue, trazemos-lhe o percurso de Ernesto Mathusse, um instrumentista e praticante de danças tradicionais moçambicanas que actua desde a década de 1960. Diz-nos o artista que, materialmente, a prática não lhe rende nenhum benefício, no entanto, sob o ponto de vista terapêutico físico-psicológico já não se pode dizer o mesmo: “Se paro de dançar fico doente”. Acompanhe a conversa informal.
@Verdade: Há quanto tempo se dedica à dança tradicional?
Ernesto Mathusse: Sou de 1956 e comecei a praticar as danças tradicionais quando tinha 10 anos de idade. Geralmente, actuava na planície, em casa dos meus pais, com um grupo de amigos, sobretudo em cerimónias locais como, por exemplo, as missas e os casamentos, em que erámos convidados.
@Verdade: Como se chamam as danças que pratica?
Ernesto Mathusse: O Chizambe e o Makwai são as principais danças tradicionais que tenho feito, em Maputo.
@Verdade: Fale-nos da sua criação.
Ernesto Mathusse: Praticamente, cresci solitário, sem alguém para me ajudar, porque o meu pai, Rafael Mathusse, perdeu a vida muito cedo quando eu era um miúdo de sete anos de idade. A minha viúva mãe, Adelina Manhique, ficou a transpirar a fim de garantir que eu e os meus irmãos fôssemos à escola. Como eu sou o filho mais velho, acabei por abandonar a escola. Por isso, não fiz a 4ª classe. Só conclui a 3ª rudimentar, depois comecei a trabalhar. Entre 1971 e 1972, a cidade de Lourenço Marques começou a ser alvo de um êxodo rural acentuado. Por isso, em 1974, fugi para a África do Sul, muito em particular porque a PIDE começou a perseguir-me, dado o facto de que sempre acompanhei a Rádio Voz da Tanzânia, o que fez com que a Polícia ficasse atenta em mim. O problema do êxodo rural tem a ver com o facto de que as pessoas, quando estão no campo, não acreditam que estão, verdadeiramente, nas suas casas. Por isso, quando emigram para a cidade não retornam às origens. O que agravou a situação foi a guerra dos 16 anos, porque mesmo depois do Acordo Geral de Paz, em 1992, as pessoas não quiseram retornar às províncias. Por exemplo, eu sou da província de Gaza, tenho uma criação de gado, mas como sempre se ouve que a guerra está a rebentar em Muxúnguè tenho muito receio de voltar. Tenho dito aos meus filhos que aqui em Maputo só temos residência, não somos nativos. Vivo aqui desde 1971.
@Verdade: Como é que era o movimento cultural na era colonial, tendo em conta o controlo da PIDE?
Ernesto Mathusse: O chefe da povoação onde eu vivia promovia reuniões entre os bailarinos. Juntava artistas de diversas localidades a fim de lhes colocar a competir. Alguns eram apurados outros despromovidos, no entanto ninguém era melhor que os outros. Os certames artístico-culturais, como acontece com os festivais nacionais de cultura na actualidade, tinham o objectivo de promover interacção entre representantes de locais diferentes. Por exemplo, actualmente, se se quiser valorizar os instrumentos tradicionais que eu toco, tem que se ir a Inhambane.
@Verdade: E como se chamam os instrumentos com os quais actuou?
Ernesto Mathusse: Como sou artista, convidei um jovem da província de Tete que tocou um instrumento produzido a partir de um caniço chamado nkankubwe. Mas também tocamos o xipendani e a mbira.
@Verdade: Porque é que fez essa junção de instrumentos fabricados em regiões diferentes do país?
Ernesto Mathusse: Como artista, não me posso cingir apenas ao que tenho. Quis intercalar as sonoridades, envolvendo artistas de Tete e de Lichinga. Todos somos residentes de Maputo e ensaiamos no Centro dos Idosos de Matendene.
@Verdade: Fale-nos das suas participações nas edições anteriores do Festival Nacional da Cultura.
Ernesto Mathusse: Fui apurado, em 2006, altura em que o evento decorreu em Cabo-delgado, actuando com o chizambe. Em 2008, embora devesse, não participei porque faleceu o meu primo com o qual cresci. No entanto, a experiência de 2010, em Manica, foi muito bonita. Estou muito feliz em ver os nossos jovens envolvidos na nossa cultura. Temos que investir mais na cultura tradicional, porque morre o homem e ficam os seus feitos. Em 2012, quando foi a vez da província de Nampula, eu não fui apurado. De qualquer modo, como sou um artista maduro, compreendi que era necessário que fossem os outros. Mas a derrota é sempre chata.
@Verdade: Qual é o grande ganho dos festivais nacionais para si?
Ernesto Mathusse: Os festivais ajudam a disseminação da nossa cultura. É importante que se saiba que os instrumentos musicais que tocamos foram produzidos pelos nossos antepassados. Por exemplo, estou muito feliz com o facto de a Universidade Eduardo Mondlane estar a levá-los para a academia. Recordo-me de que, certa vez, actuei num espectáculo teatral em que tocava o chizambe. Por exemplo, o Doutor Luka Mukavele, que é professor universitário, tem vindo à minha casa fazer as suas pesquisas. Recordo-me de que, certa vez, José Mucavele, um grande músico, convidou-me para ir à sua casa, só que não tenho tido condições para me deslocar até lá.
@Verdade: O que acha que deveria melhorar no Festival Nacional da Cultura?
Ernesto Mathusse: Praticamente, é muito difícil encontrar pessoas da minha idade, por isso, a participação massiva dos jovens nestes eventos é um sinal de melhoria. Nem sempre foi assim.
@Verdade: Como tem sido o seu dia-a-dia? O que faz para garantir a sua sobrevivência?
Ernesto Mathusse: Quando se fala de pobreza, eu reconheço que sou pobre. Como se sabe perdi o meu pai aos sete anos de idade. Não estudei muito. Trabalho na Direcção da Mulher e Acção Social, ganhando o básico. Perdi dois, por isso, só fiquei com seis filhos. Sinto muita falta deles porque não eram indisciplinados. Além do mais, todos são conhecidos pelo nome de Mathusse no bairro.
@Verdade: Qual é a grande recordação que tem da província de Gaza?
Ernesto Mathusse: Se eu tivesse condições, gostaria de realizar um grande evento cultural na minha terra, a fim de que os meus conterrâneos percebam a importância e a relevância que a nossa cultura possui. Iria envolver esses artistas grandes, porque nós terminamos por aqui. Nunca somos convidados a actuar noutros palcos. Por exemplo, eu agradeço bastante à Pérola Jaime que me convidou para o programa Dança dos 50 incluindo outro evento realizado em Marracuene, onde actuei com o meu xigovia.
@Verdade: O que planeia fazer no futuro?
Ernesto Mathusse: O Governo sabe que tocamos os verdeiros instrumentos de raiz, por isso, gostaria que nos apoiasse no melhoramento da nossa condição social. Por exemplo, eu trabalho com as crianças da Escola Primária Mártires de Mbuzini. Infelizmente, elas acabam por abandonar-me porque não lhes tenho dado nenhum incentivo material. Muitas vezes, sou convidado a actuar em comícios administrativos, onde nem sempre ganho algo. Os meus filhos questionam a minha tenacidade na arte. Mas como eu sou um artista maduro, não posso desistir sob pena de ficar doente.