Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

 
ADVERTISEMENT

Em Quelimane, terra de gente boa Não vá a pé, vá de… táxi-ginga!

Em Quelimane

A bicicleta é o meio de transporte mais popular na Zambézia: À entrada de Quelimane circulam em maior número do que os carros.

Outra coisa, única no país, são as bicicletas-táxi que circulam um pouco por toda a província e, sobretudo, na capital provincial. Aqui, o fenómeno surge, com particular força, em finais de 2006 e alastrou-se de tal maneira que hoje Quelimane pode ser considerada a cidade das bicicletas.

Marisa, peruca até aos ombros, andar bamboleante, entra descontraída no Café “O Coco”, centro da Cidade de Quelimane. Toma um café, pede um whisky para digestivo, fuma um cigarro até meio e apaga a beata. Com gestos cadenciados e propositadamente estudados, chama o “barman”, paga e deixa uma gorjeta. Volta a desfilar rumo à porta de saída, onde está à sua espera, um táxi. Mercedes, BMW, ou Toyota?

Nada disso. Uma bicicleta normal, com uma mini-bagageira e o respectivo taxeiro.

Ela senta-se, abraça o condutor que arranca sem despertar a atenção dos mirones, habituados a este tipo de situações; – Laura dos Santos ultrapassou os 70 anos de idade.

Semanalmente faz uma visita ao novo cemitério, o Dona Ana, situado a cerca de 10 quilómetros da cidade, uma vez que a antiga morada dos defuntos é já mesmo um… cemitério da Saudade. Ela tem “contrato” com um “taxeiro” que a vem buscar aos sábados de manhã, paga 30 meticais, ida e volta, com a condição da permanência do condutor e do veículo até ao fim da visita. Apesar da idade, sente-se confortável e desinibida ao atravessar todo o Bairro de Sinacura, onde reside, agarrada à cintura do condutor; – Amâncio Pires, de 45 anos, estava em cuidados devido ao estado de gravidez da esposa. Tudo a postos para o parto, inclusive o aviso ao hospital. Na hora “H”, envia um mensageiro para a vinda urgente de dois táxis. As gingas chegam e, nas respectivas bagageiras, sentamse a parturiente e o chefe de família; – José Candrinho, carpinteiro de profissão ganha a vida a fabricar portas. Uma vez concluída cada etapa do seu trabalho, é vê-lo a proceder para as entregas, não de camião mas de… bicicleta!

Quatro exemplos, entre milhares que se poderiam dar. A tradição, os hábitos seculares, e a transmissão de pais para filhos tornam a Zambézia no geral e Quelimane em particular, reis do uso deste transporte amigo do ambiente. Quantos litros de combustíveis poupam os zambezianos, graças ao uso tradicional e sistemático da bicicleta? Quanta poluição evitam, quanto dinheiro em combustível o Estado poupa em divisas?

Transporta e dá prestígio

Mais de 90 porcento dos acidentes e incidentes têm como protagonista a rainha da estrada quelimanense. Os automobilistas, quando se fazem à rua, têm de ter em conta as bicicletas, pois qualquer descuido pode ser fatal. Alguns até fogem às horas de ponta dos ciclistas. Nada mais pode ferir um quelimanense, que roubar ou destruir-lhe a ginga. Ao prejuízo material, juntase a raiva pelo desaforo de inutilizar uma companheira, uma amiga de todas as horas, um recurso “todo-oterreno”. Na família, serve para recados e emergências, prescindindo- se bastas vezes do uso do celular. A partir dos 12 anos, não há menino ou menina que não domine os segredos da “ginga”, que serve para preencher os espaços lúdicos, o transporte de amigos e familiares. Os segredos da reparação têm de ser dominados, pelo que há oficinas improvisadas um pouco por todo o lado.

Mas a rainha da estrada ocupa o seu espaço, não só nos corações. Nas residências, não raras vezes, permanece na sala ou no quarto, longe do alcance dos amigos do alheio. No emprego, há sempre um espaço seguro para a colocar. No futebol, entre as quatro linhas e as bancadas, a “ginga” fica majestosamente à frente dos olhos de cada proprietário, que divide as suas atenções entre os lances de perigo e a possibilidade de lhe surripiarem a companheira de todas as horas. Mais do que a sua utilidade, a “burra” na Zambézia – juntamente com o rádio portátil – dá para gingar mas também confere o estatuto de “muzugo” ou, pelo menos, de “cafre-metade”.

Perfil do homem da ginga

Pernas arqueadas gémeos “batatudos” Se um indivíduo sozinho, a pedalar tempos seguidos se sente exausto, imagine-se um taxeiro que tem de levar na sua ginga um cidadão e a respectiva bagagem em mais de 30 quilómetros. Uma estafa, sobretudo para quem não cultivou esta prática. Só que o ciclista zambeziano, quase sem dar por isso, está a cumprir com uma das mais frequentes recomendações médicas: o exercício físico, que não só tonifica o corpo, como realiza uma importante função cardiovascular, decisiva para manter o coração a irrigar o corpo. Um estudo pelos especialistas, facilmente concluiria que pelas bandas da Zambézia não abundam enfartes.

Pergunta-se: quantos problemas do coração se previnem com o uso deste amigo da saúde, veículo que, por exemplo, na capital do país, em regra, serve só para “estilar”? Porém, há que referir que este esforço, ao fim de uns anos, deixa uma marca bem visível: pernas arqueadas, gémeos “batatudos”. É o preço de um hábito que permite juntar o pedalar, nem sempre agradável, à utilidade da resolução, sem custos em combustível, dos problemas quotidianos.

Devagar, devagarinho com (algumas) marrábuas

As coisas em Quelimane não são para se fazer, mas para se ir fazendo. Há tempo para tudo, há cunhas em todo o lado. A partir de um determinado estatuto social, o zambeziano tem mainato, cozinheiro e empregados para a limpeza. O não recurso aos modernos electrodomésticos é um facto visível pois há ainda quem use velhos ferros e fogões a carvão, como forma de poupar gás e energia, maximizando o aproveitamento da mão-de-obra que vem dos distritos. Os reformados vivem com saudosismos dos tempos em que não se comprava nem coco nem mucuane e o camarão e caranguejo eram oferecidos como petisco nas cervejarias. Os jovens, contagiados por um dia-a-dia sensaborão, vão-se habituando a esse “rame-rame” em que nada acontece de inovador. As conversas cingem-se às notícias dos falecimentos de figuras de referência, separações e/ou troca de parceiros. As velhas marrábuas (ironias?), ainda ocupam lugar de destaque.

Quando um acontecimento corre célere pela cidade, vai ganhando contornos de “assunto de Estado”. Então cada um, à sua maneira, vai espalhando o conto, sem se esquecer de lhe acrescentar, com alguma malícia, um ponto. Rico Quelimane! Cidade pacata, de paz e de paz…maceira. Os crimes e desacatos felizmente rareiam. Por isso são notícia que perdura e dá várias voltas à cidade, alimentando conversas meses a fio. Saudoso Quelimane! Tal como refere o cançonetista português Paco Bandeira, “os dias passam iguais, aos dias que vão distantes”! Poucas conversas sobre investimentos, inovações, modernizações. O que está, está. O que não está… é para se ir fazendo planos, nas duas únicas velocidades conhecidas: devagar e… devagarinho! Carnaval é excepção Vá se lá saber porquê, quando chega o Carnaval, a Cidade de Quelimane tira a barriga de misérias.

É só ver os citadinos mobilizarem todos os meios, dentro das condições locais possíveis, para fazerem algo de diferente, no sentido de se manter a tradição de pequeno Brasil. As “jovens de antigamente” recuperam a sua jovialidade e dão o exemplo. A festa é rija e quebra o marasmo. Alguns zambezianos espalhados pelo país marcam as suas férias para essa altura, para recordarem tempos passados.

É o caso de Horácio, o popular Garrincha do Registo Civil, que anualmente faz questão de regressar à terra no Carnaval, para demonstrar que ainda está em forma. Cor, vida, alegria e iniciativa criadora é o que não falta na festa em homenagem ao Rei Momo. Por que razão este entusiasmo e vontade de fazer coisas bonitas e alegres, não se estende por todo o ano e para outros sectores da vida social da Província?

Recordar é viver De Dalomba a Lalarita

De uma ou de outra forma, há figuras que marcaram Quelimane e que ainda hoje são largamente recordadas, quer pelos seus feitos, quer pelas excentricidades. Aí vão algumas delas: Fakir Amichande, crónico presidente da Associação de Futebol, já falecido. Ele jogou até aos 40 anos e chegou a actuar ao lado do seu filho; Biriba, músico e animador, já também perecido, galã que animava as festas e arrasava as fãs; Mujuaburre, o estiloso que agora desfila em Maputo com roupas castiças, é lembrado como o futebolista Yaúca, pois corria mais do que a bola; Racune Sulemane, o homem que tinha sempre actualizado o repertório de Roberto Carlos; Lalarita, o cantor romântico que lançou temas de sabor local como “Uéio Rosa Chamba” e outras; Dona Cremilde, e Dalomba, professores “durões” que marcaram ao som das reguadas gerações de alunos, mas transmitindo-lhes um saber que até hoje perdura; “Zozé da Gaiacha”, sportinguista ferrenho, exjogador, árbitro e dirigente.

A sua partida sem regresso deixou saudades nos homens do desporto. O peso do testemunho Hoje, os entusiastas vão rareando: Manuela Dalas, ao que tudo indica, atirou a toalha ao chão. E “indexou” a Aurélio Caldeira (cinturão negro) e Daniel Sacur a responsabilidade de “puxar” o Sporting para a frente. Manuel Morais, um super-Doutor, vai transmitindo moral e saber no seu ISPU e fazendo actualização às novas tecnologias, na sua Lancho… net! O sonho de ter uma equipa no Moçambola ainda está longe, porque os zambezianos vivem divididos e não conseguem unir-se e projectar um clube nacional. Como aconteceu em Lichinga. Por estas e por outras, é que a terra dos palmares vai perdendo o passo. Espera-se, com alguma legitimidade, que o novo governador Itai Meque, com o seu estilo “guiguisseca” (precipitado, exigente), agite os zambezianos, de forma a acreditarem que é necessário protagonizar permanentes abanões na pasmaceira, para se abrir a porta ao progresso.

WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn
Telegram

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *