O nosso quintal era grande. Ainda é. Muito grande. Infinito para os sonhos da nossa meninice. A casa é pequena. Na altura era menor. Bloco a bloco vem crescendo.
Éramos muitos e muitos irmãos. Brincar era a única coisa que sabíamos fazer. Na inocência da idade, rebolávamos pelo quintal, despreocupados e em paz.
O chilreio das nossas vozes confundia-se com o tremelear da folhagem e os assobios dos pássaros. Por ali, o vento fazia uma pausa no seu ofício de soprar sem rumo e punha-se às voltas pelo quintal, fazendo remoínhos com a poeira e perseguindo as folhas caídas das árvores.
Se chovesse nunca era uma chuva triste, cinzenta. Era uma chuva colorida, sem lágrima, sem tempestade, que acabava em arco-íris. Era um quintal animado. Até o sol queria brincar connosco.
Muitas vezes o nosso pai, descansando de ser adulto, decidia meter-se em calções e ir para o quintal. Ele aparecia arastando o chinelo. Caminhava lentamente como se descansasse sobre os seus passos. Sentava-se no tronco de uma árvore derrubada que por ali havia, sugerindo que o rodeássemos para uma sessão clássica de caringanas.
– Meus filhos – chamava-nos para o comício.
– Papá! – respondíamos, de cada canto do quintal.
– Venham cá.
– Temos medo.
– De quê?
– Do lobo.
– O lobo aparece amanhã.
– Êeeeeeh! – e corríamos para o nosso pai.
Um dia, contra a previsão, o lobo andava por perto. Enquanto corríamos, atravessando a extensão do quintal, para os braços do nosso pai, espreitou por detrás duma moita e nham!, abocanhou um dos meus irmãos. Passou a armadilhar-nos todos os dias.
Surgia das árvores, dos muros, das moitas, das pedras, das sombras, de todos os cantos, e transformou o paraíso do nosso quinal em trevas. Já não podíamos brincar em paz. Perdi muitos irmãos. Ainda me doem as cicatrizes daquele tempo.
O nosso pai não gostou nada daquilo. Decidiu mudar de brincadeira e brincar de polícia-ladrão com o lobo. Muitas vezes perseguiam-se num zôtho desesperado e, como numa luta de dois elefantes, o capim sofria muito.
Geralmente aquilo parecia mais um jogo de cabra-cega porque o nosso pai mal conseguia ver ou apanhar o astuto lobo. Um dia o nosso pai chamou-nos para uma conversa séria:
– Meus filhos, eu não vou matar o lobo que vos mata. Aquele lobo é vosso irmão. Está a ser usado por um vizinho invejoso da nossa paz familiar para nos desestabilizar. Vamos inventar uma brincadeira em que possamos enquadrá-lo e tê-lo de volta.
No dia seguinte, o meu pai foi para o quintal e gritou para que o lobo, onde quer que estivesse, ouvisse:
– Meu filho, eu sou rico, tu pertences a este lugar. Vem brincar connosco.
Escondido, o lobo entendeu a brincadeira e cantou:
– Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré. Eu sou pobre, pobre, pobre de marré decê.
– Eu sou rico, rico, rico de marré, marré, marré eu sou rico, rico, rico de marré decê – respondeu o pai.
– Dê-me um pouco dos seus bens de marré, marré, marré. Dê-me me um pouco dos seus bens de marré, decê.
– Escolhe o que quiseres de marré, marré, marré. Escolhe o que quiseres de marré decê.
O lobo pousou as suas garras, desarmou os dentes e olhou para a extensão do quintal. Viu, entre flores lindas e árvores de fruta, uma de barracas encostada ao muro de vedação. Os olhos vermelhos de sangue luziram.
– Promete que paras de matar os teus irmãos e será tua aquela b arraca.
Conversaram e chegaram a um acordo.
– Que dia é hoje? – perguntou o pai, fixando no calendário da sua memória aquela data como especial.
– Quatro – alguém respondeu.
– Vamos brindar? – sugeriu-se.
– Vamos fazer as festas juntos de marré, marré, marré. Vamos fazer as festas juntos de marré, decê.
O lobo sorriu. As pálpebras derreteram sobre os olhos vermelhos. A baba escorria entre os dentes e escapava pelo canto da boca. O gume das garras riscava a taça de champanhe. A voz estrondosa soou:
– À riqueza, porque terei uma barraca e serei rico.
– Não, à paz, porque agora os meus filhos estão unidos e em paz – disse o nosso pai.
E brindaram, naquela tarde de Outubro.