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Em Mucucune Deus diminuiu as bênçãos

Em Mucucune Deus diminuiu as bênçãos

Cada vez que contemplo, de longe, a paisagem dominada intensamente pelos coqueiros, salta-me à retina o Apocalipse Now, filme de ficção realizado por Francis Copolla, tendo como actor principal o soberbo Marlon Brando. Mucucune fica do outro lado da cidade de Inhambane, em direcção ao ponto onde nasce o sol. Para lá se chegar tem que se atravessar a baía, ou de barco, em tempo de maré cheia, ou a pé, quando a maré está vaza. É um local de mito. Uma ilha que não parece devido às suas características geográficas. E em tempos, já foi um maná de marisco, porém, hoje, citando as palavras sábias de Momad Abdul Uhabo Aly, mais conhecido por Momad Wa Simbo, aqui já não há tanto produto do mar. “Deus diminuiu as bênçãos”.

Nunca consegui reprimir a vontade de lá ir outra vez, depois de ter estado nos finais da década de sessenta. Primeiro porque queria sentir novamente o prazer de atravessar, não importa como, ou a pé ou de barco, o retorno espiritual é o mesmo. Depois, aquele lugar esteve sempre cheio de enigmas. Parece haver algumas coisas da sua existência não muito bem esclarecidas, ou mal contadas, e outras contadas com mais um ponto acrescido. Mas isso é como a própria história, como diz Albertina Bessa Luís, é uma ficção controlada.

Decidi empreender a viagem, mais espiritual do que física, na manhã do último sábado, com um bloco de notas na minha sacola de palha (guikupa, em bitonga) e um smartphone da Movitel no bolso para fazer as fotos, mesmo sabendo que esta maquineta não me vai oferecer a amplitude de imagem que gostaria de ter. Mas também não posso fazer nada porque só tenho esta bugiganga.

Não sei exactamente quais são os dados que devo colher em Mucucune. Para além de Momad Wa Simbo, não sei com quem mais vou falar. Quer dizer, sou movido por um espírito de descoberta, e descobrir alguma coisa pode criar-nos uma desilusão, ou dar-nos um prazer sem medida. Como agora que chego à margem do lado de cá da cidade e vejo que não há água na baía. Os barcos foram retirados para onde possam continuar a navegar, ou ancorados à espera que a maré volte a encher. São quase 09h.30 da manhã e eu não preciso de arregaçar os calções, senão tirar as sandálias de camurça barata para vestir a terra molhada com os pés nus.

Estou sozinho, e as nuvens são benevolentes, tapam o sol para não me queimar a cabeça. Dou costas à urbe que me acolhe desde que saí do ventre da mulher minha mãe e, atrás de mim, logo ali, deixo o matadouro instalado num edifício que não vai ser mais do que um escombro anunciado. Ainda às minhas costas, estende-se uma fila de casebres desgraçados, cujos habitantes sofrem em tempos de marés equinociais (maguluti, em bitonga), sem poderem fazer nada para retirar a água que invade as suas habitações. Ciclicamente. E eles continuam ali não sei porquê. Mesmo assim, o panorama paisagístico que se escancara em toda a minha volta, como uma mulher que me envolve com amor e carinho, é esplendoroso. Caminho negligentemente com a minha guikupa a tiracolo, deliciando-me com a liberdade de estar naquele espaço criado pela própria mão de Deus.

Sabe-se que em tempos, quando a maré vazasse, ficavam a nu vários magotes de holotúrias que ninguém conhecia o seu valor quando levado para outras terras. Hoje já não se vê nenhum desses moluscos. Dizem que “os chineses varreram tudo”. O que sobrou são os pequenos caracóis (makolo, em bitonga) que fazem uma imensa esteira e que não podemos pisar com os pés descalços, a não ser que queiramos ser feridos. É isto e mais pouco, porque nos próprios mangais, os grandes caranguejos (sihologo, em bitonga), que abundavam, também partiram. “Deus diminuiu as bênçãos”.

Mito e realidade

A história diz-nos que Mucucune chegou a ser apelidada, no tempo colonial, de Ilha dos mouros, por terem ido para lá viver os descendentes dos árabes, forçados por artimanhas do dominador na altura a abandonar as suas casas no bairro de Balane, onde está localizada a mesquita velha, um testemunho vivo de que ali foi um reduto sagrado dos árabes, que queriam ficar junto à costa para vigiar mais de perto as suas embarcações. E esta minha ida a Mucucune tinha também essa pretensão, ver ou saber do que sobrou dos descendentes daqueles que chegaram aqui antes de Vasco da Gama. Aliás, o marinheiro português ao aportar em Quelimane, a caminho da Índia, teve que recorrer aos préstimos de um árabe de nome Abdul Azize, que, depois de negociações, aceitou guiar o aventureiro até Bombaim, o que, mais uma vez, confirma que alguém já cá estava e dominava a zona. Em 1498, eles já andavam por aqui.

Na “Ilha dos mouros” sobram poucos muçulmanos, uns 20 ou trinta. Os mais velhos, como Momad Wa Simbo, de 86 anos de idade, ainda conservam a história. O que avulta neste lugar é o cemitério cujas campas, pintadas a branco, podem ser vistas a partir da cidade. Aquele lugar de acolhimento dos mortos sempre foi temido, ninguém queria aproximar-se dele com o receio de ser abordado por fantasmas (dzigini). Mesmo a partir da urbe as pessoas evitavam lançar os seus olhares para ali, com medo de eventuais fulminações, porque o brilho de cal que os túmulos emanavam se via ao longe. Com resplandecência. São mitos que hoje já são não tidos em consideração. Toda a gente passa por perto, de noite e de dia, e não acontece nada. Também eu me aproximei do cemitério e não tirei fotos, provavelmente por medo. Também.

Momad Wa Simbo confirma que Mucucune continua a manter o seu lema dos tempos: paz e tranquilidade. “Sempre vivemos sossegados neste bairro, até hoje. Se houver algum problema é de pequena monta porque todos aqui nos conhecemos. Quase todos os que vivem aqui são daqui”. Na verdade, Mucucune leva esta marca. Dificilmente vamos encontrar ali um muthswa ou um chopi, ou ndau, ou mesmo um bitonga que não seja dali. A ilha levou sempre uma vida à parte, mesmo fazendo parte da cidade. Os seus habitantes distinguiam-se pelo seu comportamento discreto, o que pode estar a acontecer até hoje.

Mas os mucucunenses levam igualmente o “catálogo” da violência. Facto que é desmentido por Momad Wa Simbo. “Nós nunca fomos violentos, o que acontece é que recusamos ser provocados. Reagimos quando isso acontece, como qualquer pessoa reagiria se alguém fosse contra os seus direitos. Tudo o que falam de Mucucune é um mito. As pessoas não conhecem a realidade e, como não conhecem a realidade, inventam boatos. Se aqui não há mathswas, ou chopis, ou ndaus, é porque nunca quiseram viver neste bairro. Se alguém viesse pedir um espaço para construir, com certeza que o teria sem qualquer problema”.

No tempo colonial, um grupo de militares que cumpria serviço no quartel de Inhambane atravessou para Mucucune e protagonizou desmandos que incluíam o roubo de roupa posta a secar num estendal duma casa do bairro. É aí onde tudo começa; é como se tivessem pisado um ninho de vespas. Todos os residentes se mobilizaram e, no dia seguinte ao acto, ninguém foi trabalhar, os jovens não foram à escola. Todos eles, homens e mulheres e jovens e velhos, muniram-se de azagaias, catanas, machados e outros instrumentos de “guerra” e foram manifestar-se em frente ao gabinete do intendente. “Queríamos que ele nos levasse ao quartel para exercermos o nosso direito de vingança. Era um caso muito sério, que não degenerou porque houve bom senso e pedido de desculpas por parte dos agressores e do próprio representante”.

Mas os pedidos de desculpas não confortaram os habitantes de Mucucune. “Determinámos que a partir daquele dia não queríamos ver mais nenhum militar na nossa zona, nem militar nem polícia. Ficámos duas semanas a vigiar o bairro, com as nossas armas em punho, e depois disso nunca mais apareceram. Não queríamos ninguém fardado, nem os nossos filhos deviam aparecer ali envergando uniforme, sob pena de sofrerem as consequências”. Esta história correu meio mundo, passou de boca em boca e, cada boca que a contasse, aumentava dois pontos, e até hoje as pessoas pensam duas vezes antes de irem a Mucucune. Também por causa do feitiço, outra história que até hoje alimenta conversas em vários lugares da Inhambane e não só.

A alma fulminante

Já ninguém se lembra do ano em que morreu este homem, cujo nome não vamos fazer aqui referência porque depois podemos encontrar-nos na condição de não poder provar nada. Mas toda a gente fala dele. Dos feitos atormentadores da sua alma que, não encontrando a paz no céu, deambula pela terra fazendo vítimas. Em Mucucune as suas marcas ainda estão vivas, pese embora os seus descendentes, vivendo em Guilaleni, estejam, aos poucos, a livrar-se desse castigo. Quando ele morreu tornou-se num mpfukwa (espírito maligno). Era encontrado nos amuletos dos curandeiros (ainda é encontrado), fazendo das suas. Os filhos e os netos inocentes, de pessoas alheias, pagam muito caro porque alguns dos seus parentes, também mortos, “comeram” a carne desse mpfukwa.

Momad Wa Simbo também nos falou das peripécias dessa alma que vagueia pelas casas e pela vida das pessoas. “Olha, meu amigo, muita gente é obrigada a levar animais e dinheiro para casa desse homem para pagar uma coisa que eles não sabem. Outros viajam completamente nus de locais longínquos até à casa desta figura. As pessoas têm medo de se meter com os membros da sua família. Eles também transportam esse mito. Este espírito maligno não escolhe, é cristão é muçulmano, ele fulmina. Mas quem aceita esses caprichos são pessoas de pouca fé”.

Outro aspecto que caracteriza Mucucune são as casas esparsas, que não obedecem a nenhum ordenamento territorial. A principal actividade dos seus habitantes é a pesca. Sempre foi. Os pescadores montavam gamboas na praia, e o marisco que apanhavam em cada armadilha enchia um barco inteiro. Do mar saíam lagostas, peixes, lulas, caranguejos, santolas, todo o produto que aquela baía produzia. Era tempo de fartura que dava para alimentar directamente as famílias e comercializar a fim de custear despesas afins, como mandar as crianças à escola, comprar mantimentos na cidade e construir casas. “Para além da pesca temos o coco, que vendemos fresco ou transformado em copra. Temos ainda os cajueiros que se estendem por todo o bairro. Mas hoje por hoje, a produção, tanto do mar como destas árvores a que me referi baixou muito. Deus diminuiu as bênçãos”.

Ilha ou península?

Enquanto não nos desmentirem, Mucucune será sempre um arquipélago, que vai de Nhamalobe até a Ponta de Gulaleni. É composto por quatro ilhas, designadamente Mangwangwaneni, Gudzivane, Guilaleni e Nguhuni, esta última que leva o nome de Mucucune, por um motivo que ninguém nos soube explicar. Os seus habitantes, por serem discretos e distantes, são desconfiados e podem defender os seus direitos até às últimas consequências.

No tempo colonial, em ano que não se pode precisar, um branco do regime contraiu uma doença venérea (libuva, em bitonga), supostamente porque se meteu com uma mulher negra. Todos os da sua raça entraram em pânico. Instaurou-se uma ordem: as mulheres negras da cidade e seus subúrbios deviam ser submetidas a testes sanitários para fins que ninguém sabia. Porém, quando chegou a vez de se examinarem as mulheres de Mucucune, os homens sublevaram-se, mandaram os colonialistas à fava e disseram-lhes, na cara, que fossem primeiro fazer isso às suas mulheres.

Mucucune é conhecido pelas suas posições verticais. Até hoje pensa-se duas vezes para se fazer seja o que for naquele arquipélago. Por exemplo, Momad Wa Simbo conta-nos que nos primórdios da independência nacional houve uma campanha de caça aos feiticeiros. Todos tinham que ser submetidos à prova de matsawu, bebida tratada com ervas cujas propriedades são capazes de detectar esses indesejáveis. Em todos os bairros formavam-se longas filas para o rito, mas em Mucucune esse acto não se realizou. Recusaram-se a ser submetidos a tamanha humilhação. E são estas histórias que fazem do arquipélago um lugar distante e perto ao mesmo tempo.

Mucucune é (era) um lugar escolhido pela própria mão de Deus. Em tempo de maré alta a juventude fazia-se à praia para nadar lado a lado com os golfinhos que passeavam por ali, livremente. Lembrei-me deste fenómeno agora na minha ida – efémera e eterna ao mesmo tempo – àquele santuário. Fui em maré vazia, e fiquei lá todo o dia à espera que enchesse para ver os golfinhos passeando por ali, mas… nada! Momad Wa Simbo diz que já não há golfinhos por aqui. Quando aparecem, em número muito reduzido, é um espanto. “Nos tempos em que metíamos os nossos barcos para a recolha do peixe, esses animais pacíficos acompanhavam-nos muito de perto, mas hoje Deus diminuiu as bênçãos”.

É maré cheia. Calma. E eu estou de regresso a Nhapossa, bairro onde vivo. Em paz. Desta vez tenho que apanhar o barco. Com a vela enfunada. Que vai deslizar a favor de um vento suave que sobe do Sul. Olho para o céu e vejo uma avioneta a passar rente aos coqueiros, ao encontro da pista. Procuro com os olhos os flamingos que andavam por aqui em bandos de não acabar e… nem uma dessas aves alvas! Estou de costas para Mucucune. Viro a cabeça e vejo o cemitério onde foi enterrado, recentemente, o corpo de uma das figuras mais respeitadas da comunidade muçulmana, o Muhadisse, professor e sacerdote. Um cemitério que ainda tem muito espaço para receber os mortos, contrariamente ao da cidade de Inhambane, que já está para além dos seus limites.

É isso! Já desci do barco e estou em terra firme. Olho para onde estive e revejo o Apocalipse Now, de Francis Copolla e Marlon Brando. Aceno, na minha imaginação, ao Momad Wa Simbo: Deus diminuiu as bênçãos!

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