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EDITORIAL: Quando o povo mandou nos senhores

EDITORIAL: Quando o povo mandou nos senhores

Na passada quarta-feira, por volta das 6,30 horas, sou, subitamente, acordado por um telefonema do meu cozinheiro: “Patrão não estou a conseguir sair daqui [Zimpeto]. Os chapas não circulam, não há transporte. Está tudo parado e os terminais estão cheios de gente.” No final, diz-me: “Se conseguir ainda vou hoje.” Percebi, pelo seu tom de voz, que disse a última frase só para me animar, porque muito difi cilmente viria. E assim foi.

Percebi também que o apelo à greve, divulgado na véspera por SMS, surtira efeito, confi rmado pela nebulosidade que toldava o horizonte, a fazer lembrar outras revoltas populares também contra o aumento do custo de vida. Durante todo o dia ouvi dizer da boca dos responsáveis políticos e mesmo de alguns intelectuais, que a revolta não tinha um rosto, que não dava a cara, escondendo-se por trás de “aventureiros, malfeitores e até bandidos”, epítetos entregues por um alto responsável do Governo.

Os manifestantes passaram rapidamente a “agitadores”, a gente desocupada, oportunista, que actua a soldo de interesses contrários ao desenvolvimento da nação, pondo mesmo em dúvida o seu patriotismo. Só faltou apelidá-los de “inimigos do povo”, termo usado na União Soviética no auge do estalinismo quando o regime queria desembaraçar-se dos que ousavam não seguir exactamente a linha do partido.

Permitam-me que discorde completamente das declarações oficiais. Para mim, e andei bastante pelos bairros em reportagem, a revolta tinha um rosto: o povo moçambicano.

A encabeçar as manifestações vi rostos de gente descontente; de gente que sofre quotidianamente para ter um naco de pão na mesa; de gente séria; de gente trabalhadora; de gente que vive na pobreza absoluta e que assiste ao enriquecimento ilícito dos patrões que diariamente serve; de gente que, não sendo marginal, vive completamente à margem de qualquer bem-estar social; de gente que clama por justiça porque só vê injustiças; de gente que não percebe como é que Cahora Bassa é nossa e a energia aumenta; de gente a quem a pobreza absoluta roubou a dignidade mas não o rosto nem a alma, como ficou provado na última quarta-feira.

É certo que houve oportunismo nas pilhagens e nos distúrbios, o que é sempre de lamentar, mas nunca uma manifestação deste tipo seria aceite pelo Governo, demasiado autista e ocupado com outras coisas para ouvir as reivindicações do povo faminto.

Por isso, numa lógica de “mais vale ser rainha por uma hora do que duquesa toda a vida”, como disse D. Luísa de Gusmão ao futuro rei de Portugal IV, o povo mandou no país paralisando-o por 24 horas. “Hoje governamos nós”, disse alguém num grito vindo das entranhas.

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