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Duas crianças, dois destinos

Duas crianças

Verdades incómodas: as estatísticas mostram um pais profundamente desigual. Veja aqui os perfis de uma criança do Sul e outra do Norte, visualizados através de dados oficiais recentes.

NTSUMY

Olá, chamo-me Ntsumy. Eu e a Mariamo somos primas. Nascemos no mesmo ano, 2007, em províncias diferentes. Queremos contar-vos as nossas histórias de vida.

Tenho seis anos de idade. Nasci na cidade de Maputo, num centro de saúde com assistência de um médico e uma parteira. Como eu, praticamente todos os bebés na capital nascem num hospital, contrariamente a Cabo Delgado, onde sete em cada dez crianças nascem em casa sem assistência médica, com os riscos que isso comporta.

Sou a terceira e provavelmente a última filha. Para os meus pais, ambos funcionários públicos, seria bastante caro ter mais filhos: casa maior, custos de educação, roupa, férias. Três filhos por casal é a média em Maputo. Em Cabo Delgado, onde nasceu a minha prima Mariamo, a média é de sete filhos.

Nasci seronegativa. Mas em 2012 nasceram 14 mil bebés seropositivos em Moçambique. Muitos não vão sobreviver. Num universo de 100 mil crianças com HIV, que precisam de tratamento antiretroviral, sete em cada dez não têm. É triste esta realidade!

Todos os dias a minha mãe dá-me uma fruta e uma alimentação equilibrada. Assim, não vou fazer parte do alto número de crianças com subnutrição crónica: duas em cada dez em Maputo e cinco em cada dez em Cabo Delgado. Uma criança subnutrida não tem bom desempenho na escola. Isso é mau!

Sou sortuda por ter televisão, rádio e jornal em casa – quase metade das moçambicanas não tem acesso a nenhum destes meios, com grandes diferenças entre as províncias. Embora o rádio seja mais popular, 70 em cada 100 mulheres em Cabo Delgado não têm acesso, contra 50 em Maputo. Quase 16 por cento das mulheres em Maputo têm acesso aos três meios pelo menos uma vez por semana, contra dois por cento em Cabo Delgado. Como é que elas estarão informadas?

Sei que caminharei num mundo perigoso quanto ao HIV porque contrariamente ao que se pensa, a seroprevalência é maior entre as pessoas das cidades, as mais ricas, e com nível superior, tal é o caso de Maputo. Entre as províncias, Gaza tem a taxa mais alta, sendo que três em cada 10 mulheres são seropositivas, contra uma em cada 10 em Cabo Delgado.

Na minha futura família, espero participar na tomada de decisões, relacionadas com cuidados da minha saúde, fazer compras para o lar e visitar familiares e amigos. Terei mais opções que a Mariamo: em Cabo Delgado, três em cada dez mulheres participam nestas decisões, contra oito em cada dez em Maputo.

Anseio formar-me em direito. Poucas amiguinhas me vão acompanhar no caminho universitário: em Maputo, apenas sete mulheres em cada cem concluem o ensino secundário. Em Cabo Delgado é pior: apenas uma em cada cem mulheres completa o secundário. Será que a minha prima conseguirá formar-se também?

Vou adorar ter filhos mas só depois de estudar, e com parto no hospital. Assim espero não ingressar nas chocantes estatísticas da mortalidade materna: 10 moçambicanas morrem por dia durante a gravidez ou parto. São 3.500 mortes por ano; muitas poderiam ser evitadas com melhores serviços de saúde. Até quando vamos continuar a morrer por dar à luz?

MARIAMO

Olá, chamo-me Mariamo. Na página anterior conheceram a minha prima Ntsumy. Aqui vão conhecer a história da minha vida. O meu pai é professor de escola primária, a minha mãe é camponesa. Nasci em Cabo Delgado.

Os meus pais cuidam bem de mim. Estou protegida contra muitas doenças porque tenho todas as vacinas básicas. Obrigada, pais! Que pena, só quatro em cada seis crianças na minha província têm todas as vacinas. Sabiam que uma criança de Cabo Delgado tem três vezes mais probabilidade de morrer antes dos cinco anos que uma de Maputo?

A malária mata mais crianças moçambicanas do que qualquer outra doença, mas estou bem protegida desde a barriga da minha mãe. Ela, assim como 62 por cento das grávidas em Cabo Delgado, tomou medicamentos anti maláricos durante a gravidez. Durmo em baixo duma rede mosquiteira, tal como mais da metade das crianças da província.

Gosto de visitar a Ntsumy em Maputo, porque ela tem casa de banho com autoclismo, como 27 por cento dos lares na capital, enquanto 74 por cento tem latrinas melhoradas. É giro apertar um botão e a água sair! Em Cabo Delgado, 63 por cento dos lares tem latrina não melhorada e 30 por cento não tem latrina, usam o mato.

Os meus pais insistem em que eu devo concluir o ensino primário e secundário. Serei uma excepção na província de Cabo Delgado, onde duas em cada cem raparigas estão alfabetizadas, enquanto em Maputo quase todas as mulheres sabem ler e escrever (85 por cento). A Ntsumy tem mais possibilidades de chegar a ser advogada. Mas eu vou tentar, quero ser jornalista para denunciar as desigualdades sociais.

Na minha turma de amiguinhas, as mães queixam-se dos problemas em levá-las ao posto de saúde: para 81 por cento o problema é o dinheiro e para 77 por cento a distância, 65 por cento têm dificuldade em ir sozinhas, e 44 por cento em obter permissão. Puxa, está difícil sobreviver em Cabo Delgado!

A minha mãe disse que quatro filhos chegam. Ela é uma excepção na província onde, em cada cem mulheres, apenas três usam um método anticonceptivo moderno. Não é de estranhar que continue alta a fecundidade do meu país!

Em Cabo Delgado, cinco em cada dez raparigas são mães antes dos 19 anos, contra duas em cada dez em Maputo. Mas não eu! Eu quero estudar e brincar. Uma criança não deveria ser mãe. O meu pai disse que os ritos de iniciação levam ao sexo, casamento e gravidez precoce. Não me manda ali, não, senhor. Veja só, uma em cada três raparigas no norte de Moçambique casou-se antes dos 18 anos, e a maioria delas abandona os estudos.

O HIV preocupa-me. Embora lentamente estejam a reduzir as infecções em Moçambique, o número de mulheres e jovens infectadas não diminui. No ano em que eu nasci, 56.000 mulheres contraíram HIV, número igual ao de 2010. Aahe! Eu vou fazer sempre sexo seguro. Melhor ainda, vou arranjar um marido fiel.

Há poucas oportunidades de emprego feminino em Cabo Delgado fora da agricultura, que ocupa nove em cada dez trabalhadoras. Vejo as mães das minhas amiguinhas a capinarem duro na machamba, mas apenas três por cento são pagas em dinheiro, 27 por cento em espécie, e 62 por cento não tem remuneração. É injusto!

As vezes ouço as vizinhas comentarem que os maridos batem nelas. Um terço das moçambicanas disse sofrer violência conjugal. Pior, quase metade das mulheres na minha província concordam com pelo menos uma razão que justifica que o homem bata na esposa: queimar a comida, discutir com o marido, sair sem informar, não cuidar bem das crianças, ou recusar-se a manter relações sexuais. Eu não concordo. E vocês?

DADOS RÁPIDOS

• A esperança de vida de Ntsumy e Mariamo é de 52 anos.

• As províncias da Zambézia, Nampula e Cabo Delgado têm as maiores necessidades em saúde, mas os menores orçamentos de saúde;

• Uma em cada 100 mulheres fuma contra 20 dos homens;

• Na cidade de Maputo duas em cada dez trabalhadoras são empregadas domésticas;

• Nas cidades, 14 por cento das mulheres não sabe se tem uma co-esposa.

• Só 60 por cento das meninas e dos meninos inscritos concluem o ensino primário

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