Com cerca de 2000 minutos de imagem, 100 documentários, sete salas de cinema (das quais, cinco improvisadas), uma multiplicidade temática e de nacionalidades, arranca esta semana a II edição do Fórum do Cinema de Curta Metragem – Kugoma. A ter lugar na cidade e periferia de Maputo, em dez dias, a iniciativa irá devolver ao povo o que dele se captou – a imagem.
Segundo a organização, o objectivo da iniciativa é divulgar e promover o cinema no país, com prioridade para as obras que, sendo produzidas localmente, “não são acessíveis a largas camadas da sociedade moçambicana”.
Semelhante à experiência da edição passada, este ano a mostra de filmes será feita ao ar livre. Assim, a terminal de chapas da Marinha, na KaTembe, o campo de futebol, no mítico bairro da Mafalala, o pelado desportivo de KapeKape, no de Chamanculo, a Escola Nacional de Artes Visuais, no bairro do Aeroporto, são alguns lugares do subúrbio de Maputo que acolhem o II Kugoma.
A estes juntam-se o Centro Cultural Franco-Moçambicano, a Escola Secundária Francisco Manyanga e o Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema, onde se estreou o festival, esta quinta feira.
Temas diversificados como os que se prendem à realidade política, nacionalista, da cultura e tradição dos povos; sobre as artes e os artistas, bem como acerca de valores como a solidariedade, o amor e o ódio serão explorados num evento em que a imagem perpassa a realidade cinematográfica nacional.
Como tal, além de realizadores moçambicanos e africanos, em geral, o II Kugoma conta com a participação de documentários de realizadores da Espanha, França, Portugal e Brasil.
Aliás, em relação ao Brasil, o Kugoma acomoda algumas mostras do Festival Curta Santos, realizado naquele país latino-americano. Em relação a Portugal, destaca-se o filme “Apesar da solarenga tarde lá fora” – primeiro filme do realizador português Renato Chagas, que retrata uma crise conjugal de um casal moçambicano.
Tal como o Dockanema – Festival Internacional de Cinema Documentário, realizado anualmente em Maputo, o Kugoma é mais uma força que orienta o documentário moçambicano à reconquista do seu espaço na cena do audiovisual nacional.
Olhares para o Território – projecto paralelo
“Olhares para o Território” é como se chama o projecto à margem do qual, em 15 dias de formação, 16 jovens sem nenhuma experiência cinematográfica, em três filmes, aumentaram a produção de documentários “machamba” do cinema nacional.
Com “Gweva”, “Paragem” e “Outra face”, os novos realizadores retratam o sofrimento dos moçambicanos de maneiras diferentes. E tem mérito porque – não cegando a vista para a triste realidade local – reportando-a pelo audiovisual, tencionam transformá-la em benefício de todos. Não é obra do acaso que o director executivo do projecto, Andrès Morte, em jeito de auto, defesa afirma:
“A escolha dos temas foi da iniciativa dos formandos, de maneiras que não há nenhum cunho ideológico por parte dos financiadores do projecto”. Com alguma frieza, até certo ponto cómica, as imagens referem-se à pobreza urbana, bem como à inoperância do nosso sistema de transportes na capital. A produção dos documentários obedeceu ao padrão cinematográfico internacional.
Gweva – a mulher na luta pela sobrevivência
Em português, o termo gweva equivale a “mercador”. O filme retrata a vida da dona Amélia, de 38 anos, residente do bairro suburbano de Hulene, algures em Maputo. Casada, tem cinco filhos menores. No dia-a-dia levanta-se às quatro da matina. Desloca-se ao campo, onde merca hortaliças para revender, a fim de sustentar a sua família.
“A nossa vida é dura porque somos pobres. O meu marido não trabalha, a nossa vida é sustentada com recurso a um negócio pouco rentável. Então, como nenhum dos nossos filhos trabalha, ninguém nos subsidia com algum valor monetário no fim do mês”, conta em contacto com @ Verdade.
Para a equipa do “Olhares sobre o Território”, documentar a vida da dona Amélia em “Gweva”, acaba por ser “uma aula didáctica para os realizadores sobre como ser uma revendedora de hortaliças”, como comenta a protagonista.
De qualquer modo, Amélia, assume- -se como a maior beneficiária da iniciativa. “Estou feliz não somente pela gravação do filme, mas, acima de tudo, pela amizade que se desenvolveu com o pessoal do projecto”.
Mulher batalhadora
Na verdade, o documentário “Gweva”, de apenas 20 minutos, conta histórias de vidas humanas, em particular a mulher, na luta pela sobrevivência. “Escolhi reportar a história da dona Amélia como forma de revelar as dificuldades e os sacrifícios que nós, as mulheres, fazemos para sustentar as nossas famílias”, conta Lina, a responsável pela produção externa do filme.
No entanto, mais do que reportar a vida de Amélia, Lina (que vive maritalmente, e com dois filhos) é um retrato fiel das idiossincrasias da mulher. “O filme é um apelo para que pessoas de boa vontade possam ajudar a dona Amélia. Tenho passado por situações similares. Não obstante, sendo formanda, não podia retratar a minha vida”.
De seu nome completo Lina José Machai, esta mulher (que aprendeu da oficina artística algumas técnicas de entrevista) abriga nas entranhas da sua alma os mais ambiciosos sonhos. Interrompeu a escola em 2005, quando transitou para a 9ª classe.
“Desde criança sempre sonhei em ser jornalista, porque gosto de revelar aspectos da vida que os outros não saibam”.
Paragem
Em “Paragem” – o filme sobre a crise dos transportes em Maputo – os realizadores impregnam a película do semblante preocupado de muitos moçambicanos que vêem o esforço diário, na luta contra a pobreza, reduzido a nada pela inoperância do sistema de transportes.
E mais, no documentário, “a degradação dos valores morais, o desrespeito aos mais velhos, a falta de solidariedade para com os mais necessitados” são alguns problemas que daí derivam.
Mas, o documentário não somente se limita à grande maioria da população – os que dependem do “chapa” – mas igualmente aos que apesar de possuírem viaturas próprias, são sujeitos a contornar o congestionamento de algumas rotas a que se assiste nas estradas da capital.
Octávio de Sousa, estudante de Ciências Políticas na Universidade Eduardo Mondlane, e co-produtor da curta-metragem “Paragem” reporta que teve uma experiência fantástica. Primeiro, “por ter aprendido a fazer e, por fim, por retratar uma realidade que nos atinge”.
Por isso, a aposta é aceitar o desafio de “levar à película a crítica social nas próximas realizações”. Muito em particular quando se recorda de que “uma imagem equivale a mais de mil palavras”. Acredito que através das imagens – captadas de forma simples e barata – podemos contribuir muito para o desenvolvimento do país, relatando os problemas para ver se algo muda”.