O desporto motorizado é daqueles que envolve karts, carros e motos. É praticado em Moçambique desde o tempo colonial, mais precisamente na década de 40. Por razões culturais, esta modalidade não é tão propalada como o futebol, por exemplo.
Contudo, para os abalizados na matéria, o país não é leigo neste tipo de diversão como parece, até porque, segundo a história, o ATCM foi anfitrião de provas de Fórmula 1, nomeadamente o “IX Circuito da Cidade”, conquistado pelo piloto sul-africano Dave Charton, entre os dias 16 e 19 de Julho de 1968.
Já no fim da década de 70, a TOTAL na cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, organizou uma prova de rali que contou com a presença de Jean Todt, co-piloto, na altura, e hoje presidente da Federação Internacional do Automobilismo (FIA). Nos dias que correm, este desporto continua a ser praticado (por alguns), apesar de não haver massifi cação.
Nesta edição temos como entrevistado António Marques, presidente do Automóvel & Touring Clube de Moçambique (ATCM), um organismo que existe desde 1949 e que desde sempre tutelou o desporto motorizado em Moçambique.
O ATCM é membro da FIA desde 2006 e, por essa via, é reconhecido internacionalmente por aquela instituição como ACN (sigla em inglês que significa instituição nacional do desporto motorizado). Contudo, apesar do mérito, este desporto passa por maus bocados. Tudo devido à falta de união entre os seus fazedores.
@Verdade – Em que estado está o desporto motorizado em Moçambique?
António Marques – O desporto motorizado em Moçambique passa por uma fase conturbada, o que faz com que corra o risco de estagnar.
@V – Porquê?
AM – Há uma vontade enorme e doentia de se querer acabar com o ATCM e aniquilar o António Marques. Isto até é sabido por todos e inclusive foi dito na Beira por certas pessoas.
@V – Que pessoas?
AM – Algumas. Não se lembram do que disse um tal Ayoob quando fez a campanha da criação da Federação Moçambicana do Desporto Motorizado na Beira? Cito: “A intenção da FMDM é aniquilar o ATCM e o António Marques”. O mesmo Ayoob endereçou na mesma altura um correio electrónico ao Motor Clube da Beira no qual nos chama de “cães tinhosos”. Ele foi criticado pelos clubes presentes no Chimoio. Nós achamos e dissemos que o pior seria se fôssemos “filhos de uma vaca”.
@V – Pode-se dizer que o desporto motorizado está em guerra no país?
AM – O desporto em si não. Mas existe um mal-estar entre alguns indivíduos que apareceram agora e outros que há muitos anos têm lutado para que o desporto motorizado voltasse a ser o que já foi, mesmo depois da independência.
@V – Fala-se de mal-estar porque se sabe que existem duas federações em Moçambique…
AM – Foi criada a primeira federação, a Federação Moçambicana de Desporto Motorizado mas, os clubes de Norte e Centro repudiaram publicamente através de uma carta dirigida ao Presidente da República e a outras instituições inclusive a Assembleia da República.
O ATCM preferiu enviar uma carta a impugnar a mesma junto do Ministério da Juventude e Desportos. Como tal, o Ministério da Juventude e Desportos mandatou o Conselho Nacional do Desporto para que tomasse conta do assunto onde, a posteriori, este órgão convocou todos os clubes fazedores do desporto motorizado para que fôssemos a uma reunião convocada para o efeito em Chimoio.
Resumindo: essa reunião decidiu por maioria absoluta, excepto o representante da FMDM, que devíamos fazer um trabalho profundo no sentido de se criar outra federação que fosse do consenso de todos os clubes. Foi o que se fez até à tomada de posse da Federação de Desporto Motorizado de Moçambique (FDMM), numa cerimónia dirigida pelo Instituto Nacional do Desporto (INADE).
@V – E qual das duas é a legal?
AM – O que aconteceu foi isto: a FMDM foi constituída por um grupo de pessoas, quando a nova lei do desporto, no que concerne às federações, obriga que sejam núcleos, clubes ou associações a constituírem as federações e não um grupo de pessoas singulares como foi o caso. A par disso e após a criação da FDMM, a outra federação intentou uma acção judicial contra o ATCM, contra o António Marques e contra o Eugénio Chongo, presidente do Conselho Nacional de Desporto.
Nesse processo, a FMDM apresentou como testemunha o director Nacional da Juventude e Desportos, que em pleno tribunal disse que “nós o Governo abonámos a FDMM liderada pelo senhor Manuel Ramssane. O tribunal, sem que faça sentido, proibiu a actividade do ATCM e do António Marques como representantes do país no exterior e impediu a actividade do ATCM como ACN. Naturalmente, embargámos essa sentença e estamos a aguardar por uma decisão superior.
@V – E o que mais perderam?
AM – Perder não perdemos. O que se está a passar é que pilotos como os três irmãos Cipriano, os três Brazunas, o Norberto Varinde, o Benjamim Haicken, o Victor Figueiredo Júnior e outros, guiados pelos seus pais, negam- se a permanecer neste ambiente que se criou.
@V – E qual foi a posição da FIA?
AM – Apesar dessa proibição do tribunal, para a FIA continuamos a ser a ACN no país, conforme documentos na posse e o que está acordado entre a FIA e o Governo através do Ministério da Juventude e Desportos.
@V – Acha que a ligação que tem com a FIA é que estará por detrás disto?
AM – Também é. Mas não directamente e não gostava de envolver a FIA nestas questiúnculas que estão a acontecer no desporto motorizado em Moçambique. Porém, não posso deixar de dizer que conheço um mentiroso sem o mínimo de vergonha na cara, de uma ganância doentia que disse ao ministro das Juventude e Desportos, para nos desacreditar, que recebíamos 80 mil dólares anuais da FIA, o que é pura mentira.
@V – Quanto é que recebem da FIA?
AM – Desde que somos membros de pleno direito a partir de 2006, recebemos mais ou menos 33 mil dólares. Como se pode ver, muito longe desses 80 mil dólares anuais o que corresponderia a 480 mil dólares. Entretanto gostávamos de esclarecer que como membros da FIA que somos, pagamos anualmente mais ou menos de quotas 6 500 dólares. Multiplicado por seis anos dá 39 000 ou seja, recebemos da FIA 33 000 e pagamos 39 000. Isto é para se ver a falta de conhecimento desse indivíduo que nem é sócio.
@V – Recebem ou já receberam algum financiamento do Governo?
AM – Nunca!
@V – Porquê?
AM – Entendo que o desporto motorizado ainda não é prioritário para o país e que, apesar das dificuldades que encaramos, conseguimos ainda ser sustentáveis ao nosso jeito.
@V – Para dizer que tem tido problemas de tesouraria?
AM – É lógico.
@V – Pode dar exemplos e dizer para onde é canalizado o fundo alocado pela FIA?
AM – Nós nunca parámos com o desporto automóvel. Investimos muito na formação de directores de prova e comissários de pista. Apoiámos a formação de pilotos jovens, comprámos karts para a academia, contratámos um instrutor que foi campeão do mundo, pagámos a deslocação a pilotos que foram para Idub e Zwart Kops.
@V – E de onde vêm os outros fundos?
AM – Dos patrocínios, das licenças internacionais de condução, do público que tem afluído aos nossos eventos, dos pilotos e dos sócios. Mas sublinhe-se: ao público devemos um eterno agradecimento pelo apoio que nos tem prestado assim como aos pilotos que são a razão da nossa existência.
@V – E do seu?
AM – Nos últimos dois anos tirei cerca de 400 mil meticais do meu bolso para diversas questões pontuais.
@V – Terão alguma vez cancelado alguma actividade planificada por falta de fundos?
AM – Nos últimos 14 anos talvez duas vezes, que seja do meu conhecimento. As outras vezes foi pelo estado do tempo.
@V – Têm recebido apoio de empresas?
AM – Sim e não! Ressalve por exemplo a Coca-Cola, a Embarcadero, a Leader Trader, SouthenSun, Andaimes e Cofragens, Acty, Toyota, Nissan, Engen, Total, entre outros.
@V – Alguma razão para tal?
AM – Infelizmente temos uma Lei do Mecenato que não funciona. Não preciso de citar muitos exemplos. O próprio partido Frelimo já patrocinou provas de outros clubes do desporto motorizado mas nunca as do ATCM.
@V – Em termos de infra-estruturas, o ATCM, como organismo pioneiro do desporto motorizado, tem-nas?
AM – De todas as que nos retiraram, apenas nos restou o Autódromo na Costa do Sol. Um espaço avaliado em cerca de 700 milhões de dólares norte-americanos, onde, apesar das dificuldades, levamos a cabo as nossas provas e lutamos pelo seu desenvolvimento assim como pela não alienação do mesmo.
@V – Fala de infra-estruturas retiradas. Quais?
AM – Ao longo do país temos muito património que nos foi retirado. Talvez vá perguntar porque o ATCM não abrange todas as províncias, pois então encontre aqui a resposta.
@V – Mas quais, concretamente?
AM – São várias. O Clube dos Empresários é nosso; O Palácio dos Casamentos na cidade da Beira, as bombas de gasolina junto ao Centro de Conferências Joaquim Chissano que destruíram, as bombas junto ao Hotel Cardoso, o Complexo Zalala em Quelimane, o edifício na zona do cinema Novo Cine na Beira, entre outras infra-estruturas. Ora, todo este património é nosso e se estivesse na nossa posse o cenário do desporto motorizado no país podia mudar com toda a certeza.
@V – Com que base vos retiraram o património?
AM – Não se sabe. Mas em 2008 entregámos um dossier às instâncias superiores e governamentais. Esperamos encontrar respostas até porque todo esse património não está incluído na lei das nacionalizações, como se pode cogitar, por ser antigo.
@V – Quais são os desafios do ATCM?
AM – Neste momento, o nosso grande desafio é, através do nosso contributo, estancar a onda de acidentes nas nossas estradas. Mas também temos um projecto muito ambicioso de desenvolvimento do nosso autódromo. É um projecto jamais visto no país, avaliado em cerca de dois biliões de dólares norte-americanos e que só está à espera de aprovação da Assembleia Municipal de Maputo.
@V – De que tipo de projecto se trata?
AM – Como disse, é de desenvolvimento do autódromo. Queremos modernizar o nosso autódromo e construir muitas infra-estruturas tanto dentro daquele espaço como na área residencial. Queremos erguer, só para dar um exemplo, duas torres de 33 andares e uma de 23, mas na devida altura vamos trazer isso a público. Mas antes como sempre temos feito, os sócios serão os primeiros a saber do despacho que aguardamos.
@V – E no que diz respeito à formação, o que se pode dizer?
AM – Estamos neste momento parados para atender às nossas preocupações relativas ao ambiente em que está a área do desporto motorizado para, a seguir, concentrarmo-nos no nosso projecto não deixando, naturalmente, de continuar a realizar provas, como as que vamos organizar com o Xitituto Clube de Gaza e o Conselho Municipal de Xai-Xai nos próximos dias 13 e 14 de Outubro, assim como preparar a quarta prova de karts e a sexta de drifts e special stage para além de uma grande prova internacional que temos programada para celebrar os 125 anos da cidade de Maputo.
@V – Tem-se a ideia de que o desporto motorizado em Moçambique não é para todos. É da mesma opinião?
AM – Não se pode ter medo de dizer que é um desporto das elites embora leve muitas pessoas a assistir às provas nas pistas e acho que se for um desporto de elite com fundos próprios é bom. O que seria mau era envolver dinheiro de proveniência duvidosa.
@V – Porquê?
AM – Cada piloto, no fim da sua formação, para continuar neste desporto, tem de ter o seu próprio veículo para as provas. O que logo à partida se percebe que ter uma viatura só para corrida, não é para todos. Vou mais longe: em termos técnicos, um carro, numa só prova de velocidade, precisa de oito pneus.
Numa de drifts precisa de 12 caso queira ganhar. No que diz respeito à preparação, qualquer carro de 1200 a 2000 centímetros cúbicos com uma potência de 100 a 120 cavalos proporciona uma corrida que implica custos. Por outro lado, quem participa em provas de drifts precisa de carros a debitarem mais de 400 cavalos de potência, o que fica mais caro ainda.
@V – Mas isto não coloca em risco o futuro da modalidade?
AM – Muitas vezes, são os próprios pais que levam os pilotos à pista. Então, se eles fazem isso é porque estão em condições de sustentar este desporto. Não posso perder esta oportunidade de agradecer aos pais que mandam os filhos ao ATCM para aprenderem a praticar este desporto, que é de alto risco.
@V – O ATCM é patrono de uma campanha contra os acidentes de viação nas estradas moçambicanas. Isso não será uma espécie de “lavagem da cara” pelo que tem andado a promover nas pistas?
AM – É puramente uma estupidez pensar-se assim. Tudo quanto nós ensinámos nas pistas é a disciplina e o rigor. Desde que “reexistimos” em 1987 até hoje, nunca registámos em provas organizadas pelo ATCM na pista um acidente grave. Para o ATCM, a alta velocidade começa e termina no autódromo ali na pista do Costa do Sol.
@V – Quantos pilotos do ATCM foram encontrados na estrada em situação de indisciplina rodoviária?
AM – Não sei. O que gostaria de saber, e apesar disso acontecer, é porque é que a nossa polícia nunca deteve esses pilotos, apreendeu a viatura ou confiscou a carta de condução? O ATCM condena veementemente essa atitude e o autódromo pode ficar vazio mas não queremos condutores com esse tipo de atitude, quando são pilotos que pisam a nossa pista. Mas já não digo o mesmo quando são provas organizadas em circuitos da cidade.
@V – Então como se explica que o ATCM esteja envolvido em campanhas de prevenção de acidentes?
AM – É uma questão de responsabilidade. Michael Schumacher, Lewis Hamilton, Felipe Mass e Niko Rosberg pilotos de fórmula 1, são embaixadores mundiais da segurança rodoviária a nível da FIA. Aliás, a FIA, de há alguns anos a esta parte, obriga os clubes filiados a desenvolver campanhas de segurança rodoviária nos seus países de origem. Eu próprio tenho um programa radiofónico de promoção da segurança rodoviária e desporto motorizado há mais de 23 anos e não me sinto a lavar cara. Sinto-me é frustrado.
@V – Na sua opinião, porque é que as nossas estradas continuam sangrentas?
AM – Porque a nossa polícia está desmotivada. Disse isso na reunião que houve no Centro de Conferências ao Procurador-Geral da República, no INAV e ao próprio ministro do Interior, que a maneira de reduzir pelo menos 40% da sinistralidade rodoviária é proporcionar meios móveis, logísticos, apoios sociais, prestar assistência média e medicamentosa, oferecer material escolar à nossa polícia. É que enquanto forem sujeitos corruptíveis e desprovidos de meios, continuaremos a registar muitos acidentes nas estradas porque não aplicam a autoridade.