As cenas de pânico e caos que tomaram conta domingo da província chinesa de Xinjiang derrubaram o mito de “sociedade harmoniosa” idealizado pelo regime comunista. Hu Jintao, líder do partido único, lançou em 2004 este conceito, no qual cada cidadão chinês, fosse de Pequim, Cantão, Xangai, Urumqi ou Llasa, tinha que acreditar para construir uma sociedade próspera e em paz.
A China é um país gigantesco, um mosaico de 56 etnias diferentes e com enormes desigualdades entre as metrópoles urbanas e as aldeias rurais. Na quarta-feira desta semana, Hu Jintao teve que voltar apressadamente da Itália, onde deveria participar do G8: as fotos publicadas pela imprensa chinesa mostrando o presidente com sua esposa diante do Coliseu, em Roma, contrastavam demais com as imagens deautocarros incendiados e multidões enfurecidas de Urumqi, abalada domingo por enfrentamentos entre etnias.
O chefe de Estado tentará tranquilizar o 1,3 bilhão de chineses sobre a perenidade de seu modelo de “hexie shehui”, ou sociedade harmoniosa. “Ele fracassou neste âmbito. Este ideal parece estar hoje cada vez mais longe”, afirmou Jean-Pierre Cabestan, da Hong Kong Baptist University. “Vamos ver se esse lema vai continuar sendo clamado da mesma maneira.
Os tumultos de domingo mostraram que a China segue sendo um país violento, com fortes tensões sociais”, acrescentou. Diante das câmeras da rede de televisão oficial CCTV, uma mulher da etnia han de Urumqi, visivelmente abalada, considerou estes tumultos “péssimos para a unidade do país e a sociedade harmoniosa”.
Porém, muitos chineses já estão convencidos de que o conceito de harmonia promovido pelos dirigentes e pela imprensa é uma pura ficção. “É como uma dose de anestésico. Só se fala do desenvolvimento, e nunca das desigualdades entre ricos e pobres”, criticou um blogueiro. A China registra a cada mês cerca de 24.000 “incidentes de massa” semelhante aos trágicos acontecimentos de Xinjiang.
Estes incidentes são repertoriados pelos institutos de pesquisa como congregações reunindo mais de mil pessoas para protestar por motivos tão diversos como expropriações ou a corrupção local. “A harmonia é como um tapa-sexo para esconder tudo isso”, comparou um especialista em assuntos chineses. “Ninguém acredita nesse conceito”, afirmou.
Para Hu Xingdu, da Universidade de Tecnologia de Pequim, “a sociedade harmoniosa não é real, é apenas um ideal, ou talvez um objetivo”. Em Urumqi, onde um toque de recolher foi decretado, veículos cheios de soldados e policiais armados circulavam pelas ruas na manhã de quinta-feira (hora local) clamando frases como “protejam o povo” ou “protejam a estabilidade”.
Tudo em nome da harmonia. “A harmonia também pressupõe a repressão, para eliminar as forças que questionam esse conceito”, ressaltou Jean-Louis Rocca, sociólogo na Universidade Tsinghua de Pequim. “As autoridades sempre disseram que havia conflitos e problemas a serem resolvidos. A harmonia é algo que se conquista”, acrescentou.
Porém, entre os hans e as demais etnias da China, “não existe harmonia, e todos estão cientes disso”, prosseguiu. O conceito de harmonia idealizado pelo regime chinês é alvo da ironia de muitos blogueiros no país. Assim, “meu blog foi harmonizado” significa “meu blog foi censurado”, ou “meu blog foi deletado”. Da mesma forma, se um chinês foi “harmonizado”, quer dizer que foi preso pela polícia.