Com rendimentos provenientes da pensão para desmobilizados de guerra, Hermínio do Santos vive no bairro de Infulene ‘A’, numa velha casa cercada por ‘espinhosas’, com paredes sem tinta e divisórias degradadas, sem espaços condignos nem condições de mobilidade. É uma espécie de pequena sala que junta cozinha e quartos.
“Quem matou Samora Machel matou os moçambicanos. Samora faz muita falta ao país”, é com este comentário saudosista que Hermínio dos Santos, presidente do Fórum dos Desmobilizados de Guerra de Moçambique, – o homem que há dias viu a sua propriedade cercada por homens fortemente armados sob pretexto de que o pretendiam proteger – começa uma curta conversa com o jornal @Verdade. Mas já lá vamos. Situemo-nos, primeiro.
Sexta-feira 13. Estamos na sua residência situada numa ruela que se perde por detrás da Escola Dom Bosco, localizada algures no bairro de Infulene ‘A’, no município da Matola, província de Maputo. Hermínio dos Santos vive numa habitação construída pelo filho mais velho que trabalha na África de Sul. Uma casa semiacabada, com paredes sem tinta. A mesma possui três cómodos, nomeadamente um quarto, uma sala e um espaço que simultaneamente serve de cozinha, despensa e quarto.
Não é um lugar onde se espera encontrar um indivíduo que perdeu a sua juventude na defesa da pátria, mas é o lar do presidente do Fórum dos Desmobilizados de Guerra dos 16 anos e vice-presidente da Comissão dos Desmobilizados.
Mostrando o interior da sua residência, afirma que a pensão de 1300 meticais que recebe não chega para garantir o sustento da sua família. Sobrevive de pequenos trabalhos diários. A casa de Hermínio é, na verdade, o retrato de como sobrevivem outros milhares de desmobilizados espelhados pelo país. “Faço alguns trabalhos para os vizinhos. Corto `espinhosas` e cavo buracos para deitar o lixo”, diz e de seguida mostra-nos alguns produtos alimentares com destaque para um saco de arroz e cinco litros de óleo de cozinha que diz terem sido doados por uma estação de televisão privada nacional.
Longe da família
Natural de Mocuba, província da Zambézia, e de seu nome completo Hermínio dos Santos Angacheiro Nantucuro, rigidamente sentado numa cadeira de plástico no seu quintal relativamente enorme vedado por ‘espinhosas’, e num português ainda carregado, relata-nos a sua história: contava já com 18 anos de idade quando entrou no conflito armado que opôs o exército do Governo de Moçambique à Renamo, entre 1976 a 1992. Pertenceu ao então serviço paramilitar e de inteligência denominado Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), especificamente ao gabinete de luta contra os bandidos armados, tendo lutado influenciado pela ideia de “defesa da pátria”.
Longe da sua família, Hermínio dos Santos passou 16 anos em combate, razão pela qual não teve oportunidade de se dedicar aos estudos ou a qualquer formação técnico-profissional. “Não estudei e não preparei o futuro dos meus filhos – nenhum deles estuda -, porque estava a defender a nação”, lamenta. Patenteado “Major”, Angacheiro, tal como outros desmobilizados da guerra civil aquando da sua desvinculação, conta, recebeu um balde, uma enxada, uma catana, um regador, um par de sapatos que não lhe servem, uma camisola e uma cueca.
“Disseram para ir cultivar, mas não me deram local para o fazer”. Hoje, com 58 anos de idade, pai de nove filhos e com uma cicatriz na perna esquerda produzida por um projéctil, comenta que se soubesse que era este o futuro que lhe esperava jamais teria ingressado na guerra.
Revoltado
Com as mãos num rodopio invariável, recordando o passado mas sempre de olhos postos no presente, fala num tom revoltado: “Hoje sou tratado com um bandido depois de tudo que fiz pelo país”. Em causa está o facto de ter sido detido, acusado de desobediência qualificada, na presença dos seus filhos menores de idade.
Segundo Angacheiro, cerca de 12 polícias invadiram a sua residência, fazendo-se passar por jornalistas de uma estação televisiva privada: “Eram 19h45, estava a assistir à televisão quando chegaram. Os meus filhos, assustados com a violência com que entraram na minha casa, fugiram para a casa dos vizinhos. Aquilo foi um sequestro para me matarem”, conta e acrescenta que foi colocado na mesma cela com indivíduos que cometeram diversos crimes. “Levaram-me para a esquadra do Beleluane. A minha família e o meu advogado não sabiam onde eu estava. Queriam matar-me mas recuaram quando se aperceberam de que a comunicação social já estava informada da minha situação”.
Dias antes, um pouco mais de 40 homens da Força de Intervenção Rápida (FIR), em viaturas blindadas, munidos de canhões e outros material bélico, cercaram a sua residência. Hermínio dos Santos afirma que não se sentiu intimidado com o aparato militar, pelo contrário, tal deixou-o “mais revoltado”. “Estavam em posição de combate como se quisessem capturar um bandido perigoso. Nem sequer uma pistola tenho. Morto ou vivo, a manifestação acontecerá pois o problema não é com Hermínio, mas com os desmobilizados de todo o país”, diz.
Enquanto o mundo anda comedido por, supostamente, se tratar de um “Dia de Azar”, a indiferença e o alheamento de Hermínio dos Santos em relação às superstições é o que mais chama a atenção. Nem o facto de ter sido detido por dois dias, nem o de ter o julgamento marcado para o dia 18 e tão-pouco o de ter visto a casa vigiada pelos homens da FIR o fazem acreditar em azar. Aliás, no dia 16 de Setembro de 2008 foi preso por preparar uma manifestação, tendo sido liberto quatro dias depois.
Chegou à presidência do Fórum dos Desmobilizados em 2005, um ano após a sua criação. Encontrámo-lo na companhia de alguns integrantes daquela agremiação sem fins lucrativos preparando a manifestação que será levada a cabo a nível nacional dentro de alguns dias. Depois de reunir, planear e desenhar estratégias chegou o momento de se tomar uma decisão: “Amanhã (dia 14) procederemos ao lançamento da manifestação. A mesma terá lugar dentro de 15 dias. Custe o que custar, não vamos abdicar do nosso direito constitucional”, foi com estas palavras, seguidas de aplausos, que se deu a reunião por encerrada.
O Fórum conta, ao todo, com 45 mil desmobilizados de guerra em todo o território nacional, os quais participaram na guerra dos 16 anos. Dentre eles encontram-se ex-soldados da Frelimo e da Renamo, assim como órfãos e viúvas de guerra. Os desmobilizados exigem a revisão das pensões que recebem, dos actuais 1300 meticais mensais para 13 mil. Dizem ter, por várias vezes, solicitado uma audiência ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro para darem a conhecer as suas inquietações, mas nunca tiveram uma resposta satisfatória. “Achamos que a manifestação é a única forma de nos fazermos ouvir”, explicam.
A manifestação, segundo o presidente do fórum, será pacífica e acontecerá simultaneamente em todas as capitais provinciais do país. Aliás, além das principais cidades, também serão escolhidos aleatoriamente mais dois distritos em cada província.