Cansada de pintar, a artista plástica moçambicana, Lica Sebastião, decidiu desnudar-se para os apreciadores da sua arte. Desta vez, de forma incisiva, desvelada e, por vezes onírica, a pintora revela o que há no âmago das suas entranhas: “os sentimentos de mulher”.
Num evento – com uma concorrência pública à dimensão da autora – o Espaço Joaquim Chissano do BCI – Fomento, em Maputo, abrigou recentemente a publicação da obra “Poemas Sem Véu”. Sob a chancela da Alcance Editores, o livro assinala a estreia da Lica Sebastião, na literatura moçambicana, e conta com o prefácio do conceituado escritor moçambicano, Francisco Noa.
Com um mote original, “Poemas sem Véu”, a obra sugere o encontro e a descoberta de algo descortinado. Tratado e retratado e expostos sem enigmas, tão pouco tabus.
Neste ínterim, fazendo jus à sua mundi-visão sobre a realidade (que a circunda), a criadora expele na obra vários temas: amores, desamores, a mulher, a humanidade.
E, como tal, emite inúmeras mensagens sem, no entanto, perder-se do objectivo central: “exteriorizar os seus estados de espírito”. Por isso, Lica Sebastião conta que “são poemas que revelam verdades sem disfarces, nem subterfúgios. Usei a palavra de forma desnuda sem esconder nada: amores, desamores, a rua, a vida”.
Hiperligação artística
A mais nova escritora do momento, Lica Sebastião, que é igualmente artista plástica mal consegue desprender-se das cores, da força telúrica. Daí, encontramos na sua obra uma hiperligação entre a literatura e a pintura.
A respeito, a autora comenta: “Como pinto e escrevo, há vezes em que o tema da pintura chama a escrita. E o contrário também acontece – escrevo uma mensagem na tela e registo o sentimento no papel”.
Do pecado não se exclui o pecador
Com uma tiragem de 1000 exemplares, o “Poemas sem Véu” mereceu uma apresentação metaforizada da doutora Teresa Manjate, docente universitária de literatura.
Manjate equipara a obra e a criadora a “pecado e pecador”, respectivamente. E reage às suas leituras: “quando li o livro da Lica, pela primeira vez, fiquei triste. Percebi que ela havia, por meio da palavra, conseguido penetrar em espaços remotos dentro de mim. Chorei. E por ela ter conseguido fazer-me chorar, decidi ler a obra novamente, até que em alguns poemas consegui rir. Então, descobri que ainda era uma pessoa alegre”.
Para Manjate, Lica faz um uso sapiente da palavra. Explorando-a, ela revela estados da alma e “era isso que me fazia chorar”.
E Teresa Manjate não fala ao acaso. Por isso, em texto como: “O meu professor de português tinha um ritual; / leitura, interpretação e, depois, gramática. / Apaixonei- -me pelo adjectivo:/ qualificativo de cores, odores, paisagens, políticos, gente”, cravados no livro, esta docente assinala que a autora “contextualiza, procura a palavra e depois estabelece a sua emoção”.
Talvez, seja pela paixão (da infância) expressa em relação a “cores, odores, paisagens, políticos, gente” que não resistiu ao vírus da pintura. Afinal, é um pouco disto (e mais alguma coisa) que apesar de já adulta (com 43 anos) em 2006 tenha exteriorizado o que sente.
Espinhosa mas pertinente
Mais importante ainda é que (mais do que desnudar a sua alma sem reservas e, por conseguinte, convidar os leitores a fazer o mesmo) Lica Sebastião extravasa os limites. Na sua obra, não se prendeu ao belo, mas atingiu o essencial.
Eis a razão por que no texto “Último Verso” – que se espera que seja último, apenas nesta obra – coloca aos seus leitores uma questão espinhosa e pertinente: “Homo sapiens, o que vais fazer quando a catástrofe chegar ao teu planeta?”
No exposto, Teresa Manjate assinala que “pela consciência que a Lica possui sobre a importância dos que nos rodeia, chama a nossa atenção para aspectos ligados à vida, ao ambiente, entre outros aparentemente banais mas determinantes”.
Pecado vs pecador
De uma ou de outra forma não podia falar do pecado sem se referir ao pecador. Muito em particular quando se recorda que “sou exímia conhecedora do pecador, a Lica Sebastião”.
No seu estilo metafórico, Teresa Manjate testemunha: “conhecemo-nos como conhecedoras da palavra. Crescemos juntas a explorar palavras. Mas a Lica surpreendeu-me porque foi para além do exercício descoberto. Fizemos a machamba juntas. Eu colhi amendoim. Ela colheu amendoim, arroz e batata – muito mais do que o previsto”, começa por dizer para noutro desenvolvimento justificar:
“Em 2010 obrigou-nos a olhar, com surpresa para as mãos. Combinou a escrita com a pintura. E na pintura ela combinou a palavra com a imagem”. Como consequência, “nos seus poemas, descobrimos a expressões, sentimentos e, em algum momento, conseguimos enxergar imagens e palavras”. É que na sua mostra de pintura “conduzia o nosso olhar à palavra para depois desviá-la para a tela (imagem) e vice-versa”.
No entanto, desta vez, “não sei se é zanga ou decisão parcial: traz-nos só a palavra, fazendo-nos pensar para buscar a imagem dentro de nós. Está de parabéns a Lica”, finaliza a docente.
Continua difícil publicar literatura
Entretanto, a fragilidade que reina entre os mecenas das artes e cultura é considerada pelos editores como sendo o calcanhar de Aquiles que ofusca a publicação de obra de autores novos, sobretudo, de escritores jovens. Porque, na oficina de escrever poesia, Lica Sebastião é nova, somente agora publica a primeira obra mercê do apoio do BCI Fomento.
Por outro lado, a inoperância do mecenato gera, na verdade, uma grande dificuldade – expressamente reconhecida pelas editoras – daí que estas, além de traçar mecanismos que facilitem a publicação de novos autores, clamam pelo apoio e parceria do sector público e privado para o efeito, como referiu Sérgio Pereira, da Alcance Editores.
Biografia
Autora dos livros de língua portuguesa do segundo ciclo do ensino geral, Lica Sebastião é licenciada em Ensino do Português, pela Universidade Pedagógica. É artista plástica, desde 2006. É membro do Núcleo da Arte, em Maputo, e é membro da Lowveld Arts Association, uma organização com sede na África do Sul.