Além da falta de recursos e da agressividade natural da aids (sida), médicos e agentes de saúde africanos enfrentam mais uma dificuldade para prevenir a difusão do vírus HIV e promover o tratamento dos doentes: a adaptação do discurso da necessidade de prevenção, testagem e medicação correta à cultura local. Na capital, Maputo, e em outras grandes cidades moçambicanas, é grande o número de outdoors que pregam a fidelidade, a abstinência e o uso de preservativos.
Uma campanha que está atualmente na televisão pergunta: “Sabes com quem andas?” e também usa a gíria local para dizer que é bastante perigoso ter vários parceiros sexuais (“Andar fora é maningue arriscado”). Outro outdoor assegura que “Amores a mais é demais”. As mensagens também são difundidas pela rádio e ensinada nas escolas, na capital e pelo interior moçambicano.
Além da pregação da fidelidade e da abstinência sexual, comum na abordagem feita por entidades norte-americanas, a palavra de ordem escolhida, por exemplo, pelo governo brasileiro de “fazer sempre sexo seguro” também aparece, seja em campanhas que pedem o uso do “jeito” nas relações sexuais (gíria local para o preservativo) ou na distribuição gratuita de camisinhas.
“É muito difícil fazer a inferência sobre qual é a prática ou o discurso que está a fazer real influência na comunidade”, afirma o porta-voz do Ministério da Saúde moçambicano, Leonardo Chavane. Mas, diz ele, massificar a informação é uma forma de atingir às várias camadas etárias e sociais. “Por exemplo, a mensagem da abstinência é importante para os jovens que não iniciaram a vida sexual.
A última sondagem mostrou que, em Moçambique, cerca de 25% das meninas tiveram sua primeira relação sexual antes dos 15 anos”. A lei moçambicana não prevê a poligamia, mas a prática de ter mais de uma esposa é muito comum, principalmente no interior, onde a família numerosa era fundamental para o trabalho no campo. Também é grande o número de muçulmanos no país, o que traz o costume também para a cidade. Sem contar a infidelidade nos casamentos monogâmicos.
Olga, Gilda e Moisés moram na periferia de Maputo. Dividem a mesma casa há 21 anos. Olga não pode ter filhos, o que fez Moisés buscar uma segunda esposa. “Para nós é normal, diz Olga. “Foi um pouco complicado no início, mas hoje vivemos bem.” Como o marido trabalha nas minas de carvão da África do Sul e passa meses sem voltar a Maputo, a convivência maior é entre as esposas.
Gilda tem três filhos com Moisés, e divide a casa com Olga, as crianças e agora também com um netinho, de um ano. A intimidade vira cumplicidade na hora de prevenirem-se contra o HIV. Moisés não usa preservativo com as esposas. “Nós confiamos um no outro. Temos que ser um do outro. Nesta parte, não temos medo”, assegura Gilda.
Rafael Mavota já conseguiu convencer vários homens HIV-positivo a trazerem as esposas para fazer testes no centro de saúde. Há nove anos ele trabalha no aconselhamento de soropositivos e também na prevenção à aids no Centro de Saúde 1o de Maio, no bairro de Maxaquene, mas com cuidado especial ao abordar os pontos mais delicados. “É preciso respeitar as tradições. Respeitando as tradições podemos entrar melhor na vida das pessoas.”
Ele não concorda quando o discurso prega a mudança total dos hábitos e dos costumes. “Não pode pregar ‘parem tudo’, porque seríamos muito agressivos. E, quando há agressividade, não há compreensão”. Agressividade, defende Rafael, só na mensagem sobre o efeito da doença sobre as pessoas. “Precisa impressionar mais, entrar mais.”
A dificuldade em “entrar mais” também é vista nas outras etapas do tratamento. Muitos se recusam a fazer o teste. E vários que, depois de testados, descobrem estar contaminados custam a acreditar que a AIDS não é resultado de trabalhos espirituais ou feitiços. Buscam os curandeiros mesmo ouvindo deles próprios que o lugar de tratar aids é no hospital. “Feitiço é feitiço. Doença é doença”, diz Fernando Mathe, médico tradicional há 20 anos e também porta-voz da Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique (Ametramo).
“Nunca vi curandeiro curar sida”, diz, usando a nomenclatura mais comum em Moçambique. “A recomendação que damos aos pacientes é ir ao médico convencional. E, na Associação, pedimos ao curandeiros para reforçar isso.” Mas é comum o paciente resistir, diz ele, citando um senhor que insiste em receber banhos com ervas. “Ele toma antirretrovirais no hospital, pensando que é uma combinação que faço com os banhos que dou nele aqui. Mas eu sempre o empurrei para o hospital. Ele não entende que está sendo curado pelos antirretrovirais, e não pelos banhos que estou a lhe dar. Mas, se paro com os banhos, ele não vai ao hospital.”