E mais uma vez a mídia digital comanda um grande furo jornalístico mundial. E mais uma vez o responsável é o Wikileaks, o site messiânico que pareceria patético na sua pretensão de limpar o mundo se não fossem os resultados apresentados na sua curta existência. Na sua última aparição o Wikileaks colocou no ar um vídeo chocante que mostrava o ataque de helicópteros Apaches do exército americano a civis no Iraque confundidos com rebeldes.
Doze pessoas morreram, incluídos dois funcionários da Reuters que estavam a trabalhar, e duas crianças ficaram feridas. O Wikileaks publicou no passado dia 25 de Julho mais de 90 000 documentos confidenciais dos Estados Unidos sobre a Guerra do Afeganistão de 2004 a 2010. Algumas semanas antes, a documentação fora dada a três grandes publicações internacionais com o compromisso de que esperassem até ontem para publicar seu material: New York Times, Guardian e Spiegel.
São cerca de 200 000 páginas que ainda estão a ser digeridas, mas a essência já é conhecida: a Guerra do Afeganistão é muito mais feia e muito menos nobre do que os Estados Unidos dizem ser. São tantos as informações que a CNN propôs aos seus internautas que fossem ao site do Wikileaks, investigassem e compartilhassem descobertas. “Os documentos permitem às pessoas ter uma opinião informada sobre a Guerra do Afeganistão”, diz Julian Assange, fundador do Wikileaks.
Australiano de nascimento, hacker de formação, sem residência fixa, na casa dos 30 anos, filho de pais circenses, cabelos brancos como a neve e voz grave de locutor, Assange ganhou com rapidez extraordinária um lugar de gala na mídia mundial. Praticamente desconhecido até recentemente, ele transformou-se numa estrela improvável do jornalismo investigativo. Não tem formação jornalística nenhuma. Jamais escreveu uma reportagem.
Mas representa, à perfeição, o espírito do tempo digital no jornalismo: suas habilidades como hacker podem dar acesso a uma miríade de informações. Sinal de seu novo status, Assange apareceu pela primeira vez na lista do Guardian das 100 personalidades mais influentes da mídia no mundo. Viaja um bocado, mas passou a evitar os Estados Unidos desde que percebeu que poderia ter problemas sérios lá.
ASSANGE NA ELITE DA MÍDIA
O Wikileaks inspira-se, já no nome, na Wikipédia. Leaks, em inglês, são fugas. Wiki, o prefixo, representa “colaboração”, “comunidade”. Por meio de “fugas compartilhadas” o Wikileaks quer aumentar a taxa de transparência de assuntos delicados ligados essencialmente a governos e o chamado “big business”, as grandes corporações.
O Wikileaks vive de doações e do trabalho de voluntários. Estes examinam a qualidade do material passado por interessados em fazer a fuga de informação, sob anonimato estrito, informações que se enquadrem no perfil do Wikileaks. Há não muito tempo o site estave ameaçado de sair do ar por colapso financeiro. O único rosto conhecido do Wikileaks é o de Assange.
Os documentos do Afeganistão coincidem com um depoimento de um dos soldados que estavam no vídeo bombástico do Iraque trazido pelo Wikileaks. No vídeo, Ethan McCord, o soldado, vai verificar o que aconteceu com um carro atingido pelos Apaches. Encontra duas crianças feridas por estilhaços de vidros e assustadas. Elas choravam como “crianças num pesadelo horrível”. No assento do motorista, que McCord logo percebeu ser o pai pela postura de proteção, estava um homem destruído pelas balas americanas. Ele parara o carro para ajudar os homens erradamente atingidos pelos Apaches.
“Ouço o choro das crianças e sinto os cheiros daquela cena quando fecho os olhos”, disse McCord, hoje de volta aos Estados Unidos e empenhado na paz. “Vejo aquelas imagens como num slide-show. Perdi a inocência, perdi os amigos, perdi tudo.”
Para grandes empresas jornalísticas, o Wikileaks oferece preciosas pistas de como ser relevante na Era Digital. Basta saber vê-las. Para o público, o Wikileaks tem trazido luz em lugares que interesses poderosos tentam manter sob sombra cerrada — e assim, para usar uma expressão de São Paulo, combate o bom combate.