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Toma que te dou: Carta adiada a um soldado desconhecido

Já aconteceu isso várias vezes, mesmo assim insisti em escrever, na crença de que por debaixo desta lama que fere os meus dedos, tem água. Outra água reservada para mim depois desta acabar. Insultei uma vez ao meu amigo e ídolo, o Fernando Manuel, dizendo que as suas crónicas, ultimamente, já não tinham pimento, era como se ele estivesse a cavar um poço e de lá, no lugar de água, tirasse lodo.

Ele olhou para mim com desdém, e disse-me assim, pelo menos eu continuo a cavar, e cavo no sentido de ver se encontro essa dádiva de Deus para saciar as tuas goelas de merda que morrem a cada dia de sede espiritual. Mas claro que tudo aquilo era uma brincadeira, ou era meio a sério, porque há dias em que um cronista fica abandonado pelos seus demónios da escrita.

É como hoje, acordei de madrugada querendo escrever uma carta a um soldado desconhecido, e as ideias encravavam. Não conseguia arrancar, porque o segredo de uma boa crónica pode estar no título. É imprescindível também que o primeiro período tenha a capacidade de prender o leitor, e depois levá-lo, sempre em suspense, até ao fim, ou ainda, deixá-lo a meio do caminho para ser ele próprio a completar a viagem.

Como disse, pensei em escrever uma carta a um soldado desconhecido do nosso país, atirado às matas todos os dias como carne, para defender interesses pouco claros, ou melhor, interesses por demais óbvios. Não sabia como começar, e se você não sabe como começar, o melhor é não começar mesmo, porque não há-de ir a lado nenhum. Foi o que aconteceu comigo na madrugada de hoje. Desisti de fazer essa carta, embora o desejasse ardentemente, com muita dor no peito, com imaginações que a própria realidade vai superar. Não sabia se começava por aqueles três militares de tenra idade apanhados no rio Vunduzi a tomar banho, ou por estes mais recentes, mortos dentro dos seus próprios carros de combate.

A carta nega a sair. Quis começar por falar das mães desses jovens, que choram dia e noite pedindo que os seus filhos voltem para casa. Pensei nas namoradas deles, e em outras namoradas deixadas grávidas, ou prometidas em casamento. Pensei que podia ficar bonito pegar naquela dolorosa realidade e ficcioná-la, ou ainda falar de tudo isso de forma crua, sem preconceitos. Pensei em tudo isso, mas a carta recusava-se a sair. Tentei falar do feroz combate entre o gigante Golias e o humilde pastor David, para comparar com a actual situação, mas a carapuça não servia. Voltei a visitar as escrituras bíblicas para ver se o caso em que Caim mata o seu irmão Abel, por inveja, podia me ajudar a levantar o voo… nada! A carta nega.

O título que me aparecia era “uma carta para um soldado desconhecido”, e eu achei que era muito fraco por demais. Repetitivo. Se eu quisesse escrever uma carta a um soldado desconhecido, tinha que ser algo bem conseguido, alguma coisa que comovesse, porque aqueles jovens que estão nas matas, sem dormir, morrendo diariamente, cada um deles tem uma mãe. Eles não estão ali de mote próprio e, como todos os cidadãos que amam a paz, não querem comandar as suas vidas através de um gatilho. Eles próprios não sabem porque é que estão ali. Não tenho a menor dúvida de que se aquela carnificina terminasse hoje, todos eles saltariam de alegria. Renasciam. Tanto de um lado, como do outro.

Se eu tivesse conseguido escrever essa carta, não terminaria sem manifestar a minha revolta contra o facto de ele, o soldado desconhecido, estar ali para morrer em nome da riqueza dos outros. Diria também que esse soldado desconhecido, não é desconhecido. Ele tem uma mãe. Está registado oficialmente. Pois é! Sinto-me derrotado nesta batalha de hoje, mas hei-de voltar!

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