– Hêee, ka hissa – desabafou um madjonidjoni, regressado das minas, com os cabelos defrisados à moda da djoni, mais carregado que um animal de carga em pleno expediente, ansioso para o reencontro com a família, um ano depois. Estávamos na fronteira.
Era gente como eu que trazia da África do Sul de tudo um pouco para as festas de fim de ano e para os negócios caseiros. Queixavam-se, uns e todos, do calor, aliviando um botão ou agitando o que estivesse à mão.
Estava quente. Muito quente. E húmido. O corpo humano, percebia-se, não fora desenhado para tanto calor e humidade. Tem os sistemas de refrigeração obsoletos para os calores destes dias. Diz-se que é culpa do aquecimento global. Mas aquele aquecimento não parecia ser assim tão global. Parecia mais um aquecimento parcial, local, a acontecer só ali na fronteira da nossa terra, a avaliar pelos que vinham de outras terras, que pareciam vir de lugares mais frescos.
– Que aquecimento global, qual quê? Isto mais é um esquecimento global – disse um, em conversas de enganar o tempo, aguardando a vez na fila para carimbar os passaportes – Deus está velho, esqueceu-se de ligar o ar condicioado lá em cima.
Um homem muito redondo chamou-me atenção pelos trajes estrangeiros. Afastou-se da fila à passo de gordos, fugindo do sol, e acomodou-se na primeira migalha de sombra que uma árvore desfolhada quase fazia.
Metia pena aquele estrangeiro. O calor parecia cozer-lhe até a alma. Sentou-se no baseamento do edifício. Abdicou de poses e descalçou as botas de couro pretas, pesadas, que o esmagavam e custavam a desprender-se dos pés. Pareciam estar pregadas aos membros, e o balão do abdómen não ajudava a inclinar-se tanto.
Despiu o enorme casaco vermelho com gola e punhos brancos que, como as calças, também vermelhas, estavam forradas com pele de um animal polar, traje obviamente impossível para aqueles quarenta graus à sombra.
Em desespero, de camiseta interior e suspensórios, comprou de um vendedor ambulante uma cerveja e deu goles urgentes. Um arroto forte rasgou-lhe a sede. Desapertou as calças e soltou a barriga rechonchuda. Massageou os pés transpirados e acariciou os calos. Passou o indicador pelas micose entre os dedos dos pés e cheirou disfarçadamente. Quando uma brisa muito tímida se insinuou sobre ele, esticou as pernas, os dedos, e suspirou.
Pelo traje inconfundível eu já o tinha reconhecido. Aquele estrangeiro era um dos ídolos da minha infância, das minhas primeiras leituras, figura lendária que leva presentes aos lares de crianças bem-comportadas na noite da Véspera de Natal. Atravessei a enchente aproximando-me do fulano:
– Pai natal!
Virou o rosto rechonchudo que mesmo maltratado com o calor não perdia aquele ar alegre. A barba branca parecia neve, a ponta do nariz e a maçã do rosto avermelhavam.
– Oh oh oh, xtah kalor. – respondeu enxugando o rosto com a mão.
– Vens trazer brinquedos para as crianças de Moçambique?
– No. No brinquedos.
Respondia-me num português anglo, e eu tropeçava no meu inglês rasteiro. Explicou-me que os tempos estes, não são como aqueles. Estão mais graves. E lá do mundo de onde ele vinha, a crise financeira não estava para caridades. Lá a vida está cara, não se brinca nem com brinquedos. Viera para aqui recomendado por amigos. Disseram-lhe que aqui era terra de oportunidades.
– Mozambique terra de bom gente! Opportunities, you know?
– Wich kind of opportunities? Chegou-se mais perto, segredou a voz:
– Like boladas, got it? Percebi que para fintar a crise tornara-se num mukherista da pesada. Explicou-me que estávamos num país fértil em boladas, por isso muitos estrangeiros vêm para cá. Enquanto falávamos, um agente alfandegário aproximou-se em disfarçado assobio, como se não viesse a lado nenhum. Notei que ali era local de encontro e por isso o pai natal se tinha desmarcado para ali.
Antes de falarem, o velhote olhou para alí, para acolá, e escondeu-se por trás de lentes escuras, ganhando um ar 007. Falavam muito próximos mas distanciados pela língua. Os gestos, discretos, dialogavam mais do que as bocas. Eram tão discretos que pareciam cochichar com gestos. Solicitou o meu inglês, ainda que pobre, melhor do que o do agente:
– Quantos contentores são? – pediu-me o agente que lhe traduzisse.
– Mmmm… how many… hmmm…
– desenhei com gestos um contentor.
– Containers? – percebia o velhote. – yes, containers.
Endireitou os óculos, olhou secretamente para os lados e disse o número com os dedos. O agente fez uma expressão grave, que é como se encarece um produto, mas rapidamente sorriu quando um envelope gordo saiu da mala do Pai Natal para a sua pasta. O velho comprou outra cerveja, entrou para um carro de luxo indescritível. Ligou o ar condicionado e subiu os vidros mais escuros que as lentes dos óculos. Despediu-se de mim levando dois dedos à testa, fazendo uma quase continência, depois de me oferecer um maço magro de notas, mas gordo para a minha condição, e desejar-me: – Bofesta!