A última vez que vi uma incrível matilha em casa de alguém foi em Inhassoro, na província de Inhambane, em fi nais de 1980, num espectáculo repugnante que me vai criar náuseas e medo sempre que, por qualquer motivo, a minha memória me traz fi lmes passados nesta vida que fervilha intensamente em mim.
Foi na casa de um homem chamado Mijo, filho de uma negra que baloiça entre o muthswa e o ndawu, e um chinês levado para aquelas terras por marés equinociais, à demanda de marisco. Em casa de Mijo os cães estendem-se aparentemente dormentes, alimentando-se de farinha de milho e refugo de peixe, escondendo ao mesmo tempo o fel que vai ser inoculado sobre quem ousar investir contra a propriedade do misto-china, que fala xithswa fluentemente, apagando completamente o sangue asiático que corre nas suas veias, em prol do sangue da mãe negra que carrega em si todo o veneno dos ndawu e toda a resina dos vathswa de Inhassoro. Mas como é que um cão, projectado pela insondável Mão de Deus para se alimentar de carne, vai passar a vida a comer farinha e refugo de peixe?
Ainda por cima num lugar por demais abominável, como são asquerosos os próprios felinos do Mijo! São mais de cinquenta cães de uma única pessoa, vivendo no mesmo quintal, comendo a mesma comida, todos eles repulsáveis e todos eles pautando por um silêncio estarrecedor e estranho. Nunca tinha visto algo tão horrível, porque no tempo em que esse cenário me é presente, nas zonas de criação de gado bovino ou caprino, difi cilmente se podia encontrar alguém com cinquenta cabeças. E Mijo, filho de uma negra que oscila entre o muthswa e ndawu e um chinês levado para aquelas terras por marés equinociais, à demanda de marisco, tinha uma matilha composta por mais de cinquenta cães imundos!
Nunca soube com exactidão das razões que vão levar Mijo a criar aqueles bicharocos todos. Mas a voz do povo sempre teve a certeza de que este homem encontrava nos animais, através do feitiço, a sua protecção e a bênção dos espíritos para alcançar a riqueza. Seja como for, se bem que Mijo era rico, essa riqueza não era visível porque as condições em que viviam – ele e os seus repugnantes animais – eram por demais acabrunhantes. Hoje estou a viver em Tete, onde vou assustar-me pela quantidade de cães que vejo e encontro nas ruas, vagando livremente, muitos deles esquálidos e outros bem alimentados pela provisão que vão buscando nos contentores em disputa com seres humanos a viverem na gandaia.
Na verdade, ganhei um tremendo susto quando deparei-me com esta realidade pela primeira vez, porém, o tempo e as pessoas foram me dizendo que aqueles animais que também têm como vocação ser amigos do homem, nunca nos farão mal. Eles movimentam-se em grupos, pequenos e grandes. Por vezes a solo. E muitos deles fi cam em frente à casa dos seus donos e não incomodam. Ladram como qualquer canino, e uivam sem que essa manifestação seja necessariamente sinal de mau agoiro.
Mas os cães de Tete não são os cães de Mijo, o misto-china cujo pai foi levado por marés equinociais para Inhassoro, onde casou uma negra muthswa-ndawu. Os cães de Tete comem não sei o quê na gandaia! E muitos deles estão cheios de feridas, adquiridas em pelejas de cio e na própria natureza, fazendo-nos recear que, se algum infortunado for atacado um dia…! Já agora, por que não retirar estes energúmenos das ruas de Tete?