Conversava eu esta semana com um conhecidíssimo artista da nossa praça sobre os acontecimentos violentos do passado dia 1 quando ele me disse que a culpa pelo actual estado de coisas a que o país chegou não deve ser imputada só aos governantes mas sobretudo a todos nós.
“Os governantes são o espelho dos governados, são só a sua face mais visível.” E acrescentou: “Parece que os governantes são assim tão maus e nós, povo ou sociedade civil, somos vítimas disso e não podemos fazer nada! Que fazemos nós para alterar isto? Nada! Eu contra mim falo porque não participei nas manifestações.”
Quando nos despedimos comecei a pensar nas palavras do meu interlocutor. Lembrei-me então da frase sábia do presidente americano John F. Kennedy quando tomou posse: “Não perguntes o que é que a América pode fazer por ti, pergunta antes o que é que podes fazer pela América.”
Ao proferir esta frase, JFK pretendia – os EUA viviam ainda a ressaca da ajuda à Europa do pós-guerra com o plano Marchall, a intervenção militar na Coreia e o auge da Guerra-Fria materializada na corrida ao espaço – espevitar o sentimento de cidadania em cada americano, fazendo ver que a época do welfare state (Estado Providência) havia chegado ao fim.
A verdade é que nós, aqui em Moçambique, continuamos a ver no Estado a figura do pai que tem de resolver todos os problemas. Para esta visão é certo que contribuíram muito, primeiro os 500 anos de colonialismo, e segundo, o marxismoleninismo da primeira década e meia de independência. O primeiro era paternalista, tutelar, caridoso num certo sentido mas profundamente desumano.O segundo era tentacular, poderoso, omnipresente e, porque não dizê-lo, repressivo para quem saía da linha oficial. Tanto num como noutro, andávamos mais na linha à custa do efeito dissuasor da palmatória ou do chamboco e não por uma consciência verdadeiramente alicerçada nos valores e interesses colectivos.
Se a tivéssemos não atiraríamos papéis para o chão e as nossas cidades estavam bem mais limpas; se a tivéssemos não roubaríamos as grelhas de ferro das ruas para depois ficarmos com as mesmas intransitáveis quando vêm as chuvas; se a tivéssemos iríamos parar na passadeira para dar prioridade aos peões – já houve alguém que tivesse explicado o signifi cado delas aos transeuntes? -; se a tivéssemos não iríamos deixar roubar os fi os eléctricos dos aeroportos para fazer uns cobres com o cobre pondo em risco a vida dos passageiros; se a tivéssemos não entraríamos sequer nos chapas – as circunstância em que se viajava neste transporte atenta à dignidade humana -; se a tivéssemos não pagaríamos dois mil meticais à empregada porque ninguém consegue viver mensalmente com esse dinheiro; se a tivéssemos não permitiríamos que os polícias – aqueles que supostamente nos deviam proteger e em quem, talvez seja por isso, não depositamos o mínimo de confi ança – auferissem um salário de 2500 meticais; se a tivéssemos já havíamos criado uma associação anti-corrupção para fi scalizar os desvios dos governantes; etc, etc, etc.
Nós, sociedade civil do cimento, não fazemos nada para alterar este estado de coisas. Damos razão ao pé descalço que protesta desordeiramente porque o pão aumentou um metical mas não nos levantamos do nosso confortável sofá burguês em que estamos instalados para o enquadrar no processo reivindicativo, para sindicalizá-lo, no sentido positivo da palavra.
Aliás, a ausência do peso dos sindicatos neste país é bem o espelho deste marasmo de cidadania em que vivemos. Já noutros, aparentemente com aparelhos repressivos bem mais efi cazes – como era o caos da Polónia nos anos ´80 -, fi zeram as suas grandes transformações pela via sindical.
Talvez quando os tais famintos que protestaram contra o aumento do custo de vida no passado dia 1 de Setembro invadirem as nossas casas em busca de pão acordaremos para o verdadeiro associativismo cívico. Nessa altura, esperemos não estar tão longe deles como Maria Antonieta estava do povo francês naqueles conturbados tempos do último quartel do século XVIII. Quando alguém lhe veio dizer que o povo não tinha pão esta, num misto de profunda ignorância e total alheamento, respondeu: “dêem-lhes croissants”.