No dia em que quatro mulheres negras brasileiras – lindas, talentosas, inteligentes e corajosas – decidiram lutar pela sua identidade cultural (a de ser negro), uma nova esperança em relação ao respeito pelos valores da igualdade, fraternidade e solidariedade entre os Homens foi relançada na sociedade. No entanto, enquanto as desigualdades que caracterizam as nossas sociedades não reduzirem, é urgente lançar no solo a semente da igualdade sem ansiar os frutos. O Homem perverteu o mundo…
Ao desencadear um enorme movimento cultural votado à consciencialização social do negro em relação às suas origens, a sua cultura e tradição, no Brasil, Adriana Paixão, Priscila Preta, Débora Marçal e Flávia Rosa ? as quatro mulheres que há cerca de cinco anos fundaram a Capulanas ? Companhia de Arte Negra – não devem passar despercebidas em nenhum lugar.
As causas que norteiam as suas acções e discursos políticos, no contexto sociocultural, são nobres. Elas sublimam o ser negro. E não o fazem por mero acaso, senão leiamos:
“A nossa sociedade foi construída sob os alicerces da escravidão. Tomando como base esse princípio, toda a nossa construção social foi sendo erguida em cima de um pensamento racista”, conta Priscila Preta quando interrogada sobre as razões que fazem com que a comunidade negra, no Brasil, sempre aparece como sendo aquela que luta constantemente pelos seus direitos.
Priscila, uma actriz brasileira, fundamenta a sua posição sociopolítica na cena da sociedade do seu país. Para si, “se se tem uma raça, a branca, que domina outra, a negra, resulta que os seus desdobramentos sociais evoluem com inúmeras sequelas, devido ao referido ponto de partida”.
“É por essa razão, fundamenta Priscila, que é importante a nossa afirmação enquanto pessoas de raça negra, realizadoras do teatro negro, assim como de arte negra no geral”.
Levando o seu posicionamento ao extremo, Priscila Preta esclarece que “é importante que o nosso movimento sociopolítico afirme claramente contra o que se está a manifestar”. Afinal, “se nós dissermos simplesmente que estamos a fazer teatro, subentende-se que se trata do mesmo tipo de artes cénicas que eles fazem e promovem, quando na realidade não é”.
A guisa de exemplo, diz, “no teatro europeu eu percebo que as histórias protagonizadas por personagens como a princesa Branca de Neve e Cinderella não têm nada a ver comigo. Não me representam, não me interpretam. Pior ainda, isso não proporciona algum tipo de reflexão”.
Por isso como as sociedades modernas (sobretudo as colonizadas no passado) foram construídas a partir de alicerces coloniais, ocidentais e de escravatura, um prisma “em que eles (os brancos europeus) são a norma e nós, a diversidade ? significa que precisamos de construir o nosso título, erguer a nossa bandeira, para poder dizer claramente aquilo contra o qual nos manifestamos”.
Eles não se assumem…
O autor destas linhas tem conhecimento ? ou pelo menos a impressão ? de que as actividades culturais no Brasil exercem um papel importante na questão da identidade cultural daquele povo. Afinal, é naquele país onde se fundou a literatura da escravatura dinamizada por Castro Alves (1847 – 1871); é no Brasil que a capoeira se massificou exaltando os valores do ser negro.
Mas como é que os brasileiros ? a companhia Capulanas, por exemplo ? avaliam o retorno das actividades que se têm desenvolvido no campo da cultura com maior enfoque na vida social do país, sobretudo na sociedade que se pretende criar?
A verdade é que, no Brasil, o movimento negro organizado começou há muitos anos. “Nós somos a quinta geração que está a lutar a favor do ideal de manter a conquista de uma sociedade melhor sempre viva”, considera Flávia Rosa que acrescenta: “Herdámos essa luta dos nossos ancestrais e identificámo- nos com ela. É uma forma de abandonarmos o lugar de alienação cultural, onde o sistema nos colocou”.
De qualquer modo, “sentimos que por mais que se façam mais acções (no mesmo sentido) elas ainda continuam poucas. O Brasil é um país enorme. Só a cidade de São Paulo, onde vivemos, possui uma grande extensão territorial, em que as desigualdades sociais são gritantes”.
Por isso, “nós plantamos sem esperar ver o fruto nascer. Porque não dá. Pregamos a nossa mensagem pelos quintais das zonas periféricas. Se isso irá modificar a vida das pessoas pouco nos importa, mas é importante que se faça”.
De acordo Alânia Cerqueira, o problema é que 60% da população brasileira são de raça negra. No entanto, a maior parte desse grupo populacional não se assume como tal. Em resultado disso, “as tentativas de instigar as pessoas de modo que elas se assumam (ou não) são um processo muito melindroso”. No Brasil, “as pessoas são negras por autodeclaração, mas poucas se assumem como tal”.
Desigualdades sociais em Moçambique
Se não se invocasse o nome da actriz moçambicana Lucrécia Paco, talvez uma heresia fosse cometida nesta matéria. Ela é o fulcro, o elo por meio do qual se estabeleceu o intercâmbio cultural entre Brasil e Moçambique no contexto da Capulanas – Companhia de Arte Negra.
No entanto, “apesar de reconhecermos que a palestra proferida pela actriz moçambicana, Lucrécia Paco, no Brasil, debruçando-se sobre Moçambique, a vossa presença mo país causou-vos outra impressão. Qual foi?”, perguntámos.
Em jeito de quem faz uma análise holística, Priscila Preta considera que “a primeira impressão que buscámos e sobre a qual nos integramos em relação à nossa realidade no Brasil são as periferias”.
Como tal, “percorremos alguns bairros suburbanos de Maputo como, por exemplo, Maxaquene, Polana Caniço e Mafalala, com vista a perceber a vida da população local”. No referido exercício de antropologia cultural, “compreendemos que as relações sociais em Moçambique também acontecem numa base de desigualdade”, diz.
Trata-se de uma disparidade que, por mais velada que seja, “se visualiza no campo racial também. A população negra está na periferia, enquanto no centro da cidade vivem pessoas com maior poder financeiro, sobretudo as de raça branca. A estruturação das escolas em privadas e públicas. Nós visualizámo- -nos nessa realidade”.
A grande diferença
De uma ou de outra forma, a grande impressão ? que constitui a maior diferença entre ambos os povos ? recai no facto de em Moçambique o espaço de pertença das pessoas ser valorizado na primeira fase das suas vidas; desde cedo as crianças têm uma relação com a arte, a dança, o teatro de um modo muito natural, o que no Brasil dificilmente acontece.
“No nosso país existe uma rotura em relação ao direito que a criança tem de manter e desenvolver a dança, as tradições no seu corpo”, realça.
Ademais, em Moçambique, “encontrámos crianças muito novas a expressar tendências para a dança ? ou outra expressão artística ? ainda em tenra idade. Isso ocorre de forma natural. É algo do dia-a-dia”. Então, “compreende-se que há vários aspectos comuns entre as periferias de ambos os países. No entanto, a diferença será a tendência que os moçambicanos têm de manter a cultura sempre vida desde o nascimento”.
É comum encontrar em Maputo uma criança com outra nas costas envolta numa capulana. A mesma criança toma a iniciativa de dançar, cultivar e manter a sua língua nacional. “Tudo isso oferece uma impressão viva que só pode ser captada com a nossa presença em Moçambique”.
O outro aspecto, mais importante ainda, é que sobre “a experiência de passar por um processo de 16 anos de guerra e retomar a vida com toda a força de construir uma identidade, nenhum livro ou Internet poderão tratar ou explicar melhor essa vivência do que o contacto que tivemos com os moçambicanos. A experiência de ouvir deles a sua história.
Eles preferem reproduzir o ocidente…
A dado momento, procurámos capitalizar o facto de a conversa travada com a Capulanas ? este grupo de artistas brasileiros ? ter decorrido depois da projecção da peça Combate, de um dos mais talentosos artistas moçambicanos, Dadivo José, para questionar a impressão que os nossos interlocutores captaram sobre o teatro moçambicano.
A verdade é que, no dia 29 de Fevereiro, a companhia Capulanas participara na palestra realizada na Escola de Comunicação e Arte da Universidade Eduardo Mondlane, em que se discutiu sobre a necessidade de um teatro de identidade cultural e politicamente posicionado.
“A percepção com que ficámos foi de que em Moçambique existe um grupo de pessoas que defende um teatro essencialmente de identidade, que tem como tema a questão política e social do país.”
Em contra-censo a isso, “há outro que não comunga dessa ideia. Esse grupo prolifera um teatro que se prende aos cânones ocidentais, reproduzindo os seus modelos. O professor Dadivo, por exemplo, falou-nos das dificuldades que os actores enfrentam para realizar um teatro engajado e político no país”.
De uma ou de outra forma, “nós como defendemos um tipo de teatro que resgata e valoriza a identidade e que se ocupa por resgatar a história, como forma de transformar, de questionar e de educar as posturas e as relações sociais. Acreditamos que, no caso de Moçambique, proceder assim seria muito bom e mais produtivo para uma geração que se está a construir e pretende desenvolver o país, depois de experimentar um clima de conflito armado”.
Simplesmente lamentável
Qualquer pessoa que se acredita ter o poder de transformar do teatro lamentaria o cenário de ausência quase absoluta do público na última exibição da peça Culpado, ocorrida no dia 29 de Fevereiro último. Aquela obra é singular devido à multiplicidade temática que possui, mas acima de tudo por conter muitos aspectos críticos e reflexivos sobre a nossa condição social no país.
É neste prisma que Flávia Rosa opinou que “seria bom que as pessoas pudessem ter a oportunidade de vê-la para que possam levar ao seu ambiente doméstico os seus questionamentos. Acredito que, numa sociedade, as coisas só funcionam quando as pessoas forem melhor educadas”.
Até porque“o teatro, sempre que busca uma referência, educa. Faz as pessoas pensar nela. Se é certa ou não o juízo de valores cabe aos membros da sociedade proceder”.
Na verdade, o essencial no trabalho que se desenvolve no teatro é o analisado por Débora Marçal: a mudança social. Afinal, para si, “quem transforma o mundo são as pessoas transformadas”.
Um objectivo perverso
Se se analisar as informações emitidas sobre África para o mundo e do resto do mundo para o continente negro, percebe-se o aspecto perverso das indústrias culturais. Vejamos o caso das novelas brasileiras sobre as quais Priscila Preta afirma serem uma cultura para as massas.
“O seu objectivo, diz, é manter as massas alienadas. Mantê-las nos conformes para que nunca mudem de posição”. E infelizmente “é o que se tem exportado para o mundo na tentativa de produzir um pensamento que não é real”.
Ou seja, como acrescenta Flávia Rosa, “é interessante que as pessoas não pensem, não questionem, não reflictam sobre as práticas individuais e colectivas. Então, as novelas são mecanismos de criar rebanhos”.
Por exemplo, “a disparidade social do Brasil é mais notória na cidade de São Paulo, onde há edifícios com elevadores que possuem entradas sociais e de serviço. Nas primeiras circula a classe social rica enquanto a segunda é reservada às pessoas de baixa renda”.
Esta realidade torpe “reflecte-se na cor da pele das pessoas. Basta que se tenha em mente que as pessoas que prestam serviços domésticos, por exemplo, possuem salários baixos e circulam na entrada de serviço”. Então, para a elite, “é interessante que o povo seja mantido na entrada de serviço, a dormir no quarto dos fundos. Para ela, a elite, não faz sentido que esse grupo pense em evoluir”.
O cenário repercute-se ao mais alto nível nas informações que se emitem, por exemplo nas novelas sobre a realidade brasileira para o mundo, assim como da África para aquele país.
“É por essas razões que para nós, foi muito importante estar em Moçambique e contar as verdades diferentes daquelas que são emitidas pela televisão. Da mesma forma que é interessante que se desmistifiquem as ideias, que nos chegam através da internet, de uma África (só) com uma população faminta; com crianças mal-nutridas”.
É que as indústrias culturais, que muitas vezes seleccionam o tipo de informação que difundem em função dos seus objectivos financeiros, cometem a perversidade de “difundir apenas uma parte das nossas realidades. E não significa que em África não haja pessoas que passam fome. Da mesma maneira que no Brasil existe muitas contradições sociais. Mas não é somente isso. Existem muitas possibilidades numa sociedade”, realça Rosa.
Por sua vez, Débora Marçal realça que a última finalidade deste proceder é “manter cada classe no seu lugar. Porque se nós quisermos guiar a vida de acordo com aquilo que se mostra nas novelas, ficamos com a impressão de que está tudo óptimo”. Como tal, “não teremos motivos para querer estudar, melhorar a nossa condição social, muito menos reclamar de nada. A nossa vida está bem como se encontra”.