Numa cavaqueira que se travou consigo, a propósito da sua participação na Residência de Outono 2013, que decorre na Espanha durante este Outubro, o autor da obra “Carlos Cardoso: Um Poeta de Consciência Profética”, Cremildo Bahule considera-se um escriba entre o bem e a rebeldia. No entanto, sente-se atraído pela subversão…
Neste Outubro, Cremildo Bahule está em voga. Ele não muda – anda cheio de ideologias – e algumas das suas atitudes, típicas de um escritor que persegue causas, além dos seus livros, são os debates em que participa e promove nas redes sociais: muitos são sérios e, por isso, têm muito interesse e outras são para fazer troças a quem – na sua compreensão – merece, mesmo que isso seja por puro gozo. No Facebook há espaço, e grande, para isso.
A escrita de Cremildo Bahule – plasmada em obras originais e noutras em que participa como convidado – não influencia as pessoas que as lêem simplesmente porque foram publicadas. Lá há argumentos. Há história. Há terapia. Há uma intensa procura pela verdade. Se calhar seja por essa razão que, invariavelmente, se associa a homens que perseguem causas, alguns dos quais se tornam mártires. O poeta Carlo Cardoso – já falecido e mais conhecido como jornalista – o sociólogo Carlos Serra e o rapper Azagaia são alguns exemplos.
Por essa razão, Bahule não tem dificuldade nenhuma em assumir que também influencia as consciências humanas. E não lhe faltam argumentos. “A partir do momento em que seguimos a estrada literária deixamo-nos mover por alguma causa. Acreditamos que as palavras nos conferem todas as possibilidades para serem usadas – bem ou mal – e conotadas”. Na verdade, a sua relação com a literatura existe há mais de 10 anos. E começou lá, na Escola Secundária Francisco Manyanga, onde ele e um grupo de colegas criaram o Grupo dos Poetas Mortos. Já decorreram 13 anos, mas o escritor recorda-se como se tivesse sido ontem.
“Éramos jovens negligentes que imitavam os escritos de Luís Vaz de Camões, até que, com o passar do tempo, acabámos por perceber que a literatura pode salvar vidas e/ou destruí-las. Escolhemos a primeira opção. Sabemos que não podemos fazer uma cirurgia – usando palavras – mas por meio delas podemos criar um encanto nos receptores, retratando a nossa realidade”.
E foi assim que se moldou a sua personalidade de tal sorte que nos dias que correm a sua função – que se incorpora nas várias tarefas que realiza no contexto editorial – é produzir conhecimento, reflectindo, recorrentes vezes, nas obras de quem fala sobre Moçambique na literatura, na música e noutras forma de arte. No percurso da cultura Hip Hop em Moçambique (em relação à qual afirma que falta produção de obras literárias e científicas para narrar a história) escreveu, durante três anos, as crónicas sobre o Sem Sentido que lia no programa ‘Hip Hop Time’ conduzido por Hélder Lionel na Rádio Cidade, aos domingos.
“O Hip Hop não somente é Rap, a parte musical, mas inclui outros elementos como a grafite. No entanto, percebemos que no ‘Hip Hop Time’ faltava a parte da consciencialização”. Há uma crítica favorável sobre essa experiência da parte do autor – não se sabe, porém, como é que os rappers recebiam as críticas. “Há uma literatura subjacente ao Rap e eu acho que em Moçambique – sem querer ofender ninguém – estamos atrasados porque já devíamos estar a desenhar a história do Hip Hop nacional. Temos grupos, artistas e obras de referência e com qualidade”.
Entretanto, a grande questão é: como é que essa relação com a cultura Hip Hop – muitas vezes conotada com a subversão – moldou a sua consciência participativa como moçambicano? Para Babule (que também participou na obra “A Construção Social do Outro – Perspectivas Cruzadas Sobre Estrangeiros em Moçambique” dirigida por Carlos Serra) “o Rap é considerado uma cultura rebelde. No entanto, para se ser rebelde deve-se ter algum posicionamento. E eu tenho a sorte de fazer parte daqueles que querem discutir os assuntos a fim de gerar alguma lição ou ilação. Ou seja, pertenço ao movimento dos rappers que constatam e cantam que a estrada está esburacada e propõem alguma solução”.
Buscando alguma inspiração em personalidades como os rappres Gabriel – O Pensador e Valete para escrever as suas crónica sobre o Sem Sentido, Cremildo Bahule – este apreciador do Rap e do Jazz – acabou por permitir que a sua literatura fosse influenciada também pelos pensamentos que se propalam nestes géneros, sobretudo os que são o seu apanágio. É um fenómeno, essa influência, de difícil percepção para quem lê as suas obras.
Entretanto, em entrevista cedida em directo à Rádio Cidade, este autor disse ao jornalista cultural David Bamo – e por extensão ao público – que “a minha literatura não é rebelde, mas também não é tão bonita. Ela oscila entre a rebeldia e a bondade, tendendo mais para a rebelião, não obstante o facto de que gostaria de ser mais bondoso”. É verdade que admira os rappers Gabriel – O Pensador e Valete, mas “ama” o moçambicano Duas Caras. E sobre ele afirma que “ele não sabe, mas, confesso, aprecio Duas Caras que é um daqueles rappers com o mesmo perfil de Jay-Z. É um ‘gala-gala azul’ e consegue estar no mato, no mar e no céu”.
Entretanto, se as reppers Fat Lara e Deusa Poética, a primeira falecida, iniciaram o movimento de desmistificação do machismo do Rap moçambicano, para Cremildo Bahule, neste momento quem está na vanguarda é a rapper Ivete Mafundza. “Ela é uma referência que, neste campo, quebrou várias fronteiras. Por exemplo, rompeu com o lado machista do Rap. Temos de ter em consideração que esta é uma música machista”. Mas há na cultura Hip Hop moçambicano artistas que, infelizmente, na linguagem de Bahule, se aposentaram muito cedo. Zito Doggy Style e Eduardo PM são alguns exemplos, incluindo o próprio Hélder Lionel. É verdade que este último se envolve de outra forma no movimento. Como locutor.
Estão mais frustrados do que eu
Existem inúmeras referências sobre Cremildo Bahule – muitas das quais, por economia de espaço, excluímos. No entanto, as apresentadas justificam a ambição do facto de certo jornalista querer perceber de si as prováveis razões que podem frustrar um (potencial) escritor no país. Segundo o escriba, é difícil editar livros em Moçambique. No entanto, havendo escritores talentosos que não conseguem publicar as suas obras – fazer literatura num país em que ela não funciona acaba por ser desmoralizante.
Na música, por exemplo, “não temos bons estúdios para se produzir um trabalho discográfico com boa qualidade. Qualquer artista que prima pela qualidade desloca-se à África do Sul a fim de realizar o seu trabalho – o que é muito oneroso. Nós temos grupos culturais que não têm espaço para realizar os seus ensaios e apresentar as suas obras. No entanto, no meio disso, a exemplo de muitos complexos culturais, o Cinema Império está encerrado.
O Cinema Moçambique tornou-se uma casa de venda de acessórios de viaturas. E há muitos outros cinemas que não estão a funcionar. O Cine Charlot foi vítima de incêndio recentemente”. É em virtude de tudo isso que Bahule considera que “as minhas frustrações – quando comparadas com as dos artistas moçambicanos – são muito pequenas. Mas são as mesmas”.
O contra-senso
Ora, porque, em contra-senso, deste país cheio de dificuldades surgem estrelas de cinema e teatro, escritores de nomeada, verdadeiras pepitas humanas que se formam à base no esforço individual, os criadores moçambicanos merecem o adjectivo “bons navegadores”. “Lutamos contra a maré e, por causa disso, somos bem-sucedidos. Há pouco tempo ganhámos o Prémio Camões – o maior da literatura portuguesa, com destaque para Mia Couto. Essa é a prova viva de que os nossos artistas superam as adversidades com que se debatem. Temos os melhores instrumentistas e bailarinos da África Austral que brilham por causa do seu empenho”.
“Vou interagir com escritores de diversas partes do mundo – incluindo espanhóis – a fim de falar sobre a literatura moçambicana, focalizando os aspectos positivos e negativos, o que é bom para que possamos superar as nossas dificuldades”, explica o escritor que durante 30 dias que permanecerá na Espanha, também irá concluir a peça de teatro Nação Laranja que será apresentada, pela primeira vez.

