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Alguém se lembra de Bob Bacall?

Alguém se lembra de Bob Bacall?

Dez anos depois de Jorge Lafond, actor brasileiro que nos fins da década 80 fez o papel da personagem Bob Bacall, na telenovela da Rede Globo, Sassaricando, em Moçambique ficou algo além das suas memórias peripécias. Lafond, que era gay, faleceu em 2003, mas as suas actuações fecundaram o nascimento de um dos mais brilhantes actores dos nossos tempos. Chama-se Horácio Guiamba.

Muitos de nós hão de convir que a telenovela Sassaricando foi um dos maiores sucessos, entre os produtos da indústria cultural brasileira, nos finais das décadas 80 e inícios de 90 do século XX. Em Moçambique era um dos poucos bens de especialidade exibidos pela nossa televisão estatal. A par dos outros actores, Lafond chamava atenção dos telespectadores pelo seu vestuário, o seu modo de falar incluindo os gestos que fazia. Ele era um fenómeno humano, uma estrela do humor, do teatro e da telenovela brasileira. Por isso, depois da sua morte – aos 49 anos, em 2003 – interrompeu-se uma carreira que tinha muito a oferecer à humanidade. Certamente, esse artista influenciou (muito) quem o viu.

Em Maputo o impacto do fenómeno Bob Bacall foi forte. Ele gerou um ‘start’ na carreira de Horácio Guiamba, actor moçambicano e estudante de teatro, que sonha em fazer telenovela no futuro. Há muitas transformações que se operaram ao longo da década 90 do século passado que também influenciaram Guiamba a trabalhar nessa área. Além dos estímulos que o nosso actor recebeu do brasileiro, em Maputo também havia um contexto propício para a continuidade de um percurso que se consolidou com o passar do tempo. A valorização e o incentivo da prática das artes na escola, bem como a sua utilização – por parte de movimentos como Escola Sem HIV Sida (ESH), incluindo outras actividades realizadas pela Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC). A narração de Horácio Guiamba sobre esse assunto é elucidativo.

“O meu envolvimento com o teatro é antigo. Mas ainda tenho algumas imagens do actor e da telenovela que o inspirou. Havia um senhor que fazia o papel de Bob Bacall, na telenovela Sassaricando, exibida pela Televisão de Moçambique (TVM). Eu gostava muito de ver a maneira como ele falava, gesticulava e vestia. Por isso, imitava-o e instigava os meus amigos para que, no dia seguinte, reproduzíssemos as cenas que tínhamos visto no episódio anterior. Imitei-o imenso de tal sorte que as pessoas acabaram por chamar-me Bob. A tendência prevalece até os dias actuais.

De igual modo, quando ingressei na actual Escola Primária Completa do Bagamoyo, onde pratiquei teatro, as pessoas diziam que eu era Bob Bacall. Acho que fui ousado porque, dada a existência de espaço para a expressão artística nas Reuniões do Director de Turma, eu influenciava os meus colegas para fazer cenas de humor, parodiando situações da escola. Alguns anos depois, passei a estudar na Escola Secundária de Malhazine. Foi nessa época em que vigoravam os movimentos de sensibilização de luta contra a Sida. São exemplos disso, o movimento Escola Sem HIV – ESH, bem como os protagonizados pela Geração Biz.

A partir das actividades teatrais que fazia nesse âmbito, mais do que me descobrir como actor, fui estimulado – pelas pessoas que me acompanhavam – a continuar esse percurso. Houve um professor que (numa época em que, para mim, fazer parte do elenco do Grupo do Teatro Gungu era um sonho) instigou-me a ingressar naquela colectividade, em 2002”.

O segundo momento mais importante do percurso artístico de Horácio Guiamba foi o seu ingresso no Grupo de Teatro Gungu. Afinal, “nessa colectividade descobri que tinha de fazer teatro. Eu posso e devo aprender a realizar outras actividades. Mas, digo-te Inocêncio, não sei fazer nada mais além de arte. O teatro é o meu assunto”. Sobre os seus primeiros anos no grupo dirigido por Gilberto Mendes, Horácio Guiamba recorda-se de que “quando entrei no Grupo de Teatro Gungu fazia parte da colectividade de actores que eram ordenados para actuar nas cadeias e noutras instituições a fim de fazer ‘sketches’. Era muito difícil. Só mais tarde é que subi ao palco”.

Descobrir-se no Gungu

Algum tempo depois de ingressar no Gungu, surgiu o projecto Cinema Arena, da Cooperação Italiana, que consistia na realização de actividades culturais – cruzando o cinema, a música e o teatro – a fim de sensibilizar as pessoas na luta contra a Sida. “Fui um dos actores seleccionados para participar. Nesse contexto, descobri uma série de coisas – uma das quais o meu potencial como actor. Mas quando a iniciativa estava a terminar, fiquei a saber que a Escola de Comunicação e Arte havia introduzido o curso de teatro e eu ingressei no segundo grupo dos formandos, em 2010”.

Defeitos de um actor confiante

Horácio Guiamba tem o bichinho do teatro no sangue. Circula-lhe por osmose, fluindo no seu organismo. Em resultado disso, padece de alguns defeitos de um actor confiante. A situação quase responsabilizava-se por gerar-lhe uma encrenca com a encenadora Juju, do Teatro Gungu. “É que durante a montagem da peça, eu não mostro ao encenador que domino a minha personagem – o que não significa que não tenho o pleno domínio sobre a mesma. É uma questão de poupar a minha energia. Mas agora, por causa da experiência que tive, já tenho a consciência de que devo demonstrar que estou preparado para representar em palco”.

Guiamba esclarece que no Grupo de Teatro Gungu, a montagem da peça é um processo participativo em que se discute muito. Isso significa que ninguém diz ao actor o que deve fazer. Cada artista deve sugerir acções ao encenador para a sua personagem. Por causa dessa experiência, “aprendi a criar a minha personagem e a sugerir ao encenador o que pretendo fazer na peça”.

Será em resultado dessa experiência que “não espero que o meu encenador me mostre o que devo fazer – mas eu sugiro-lhe as minhas possíveis acções na obra. Penso que todo o actor devia ser assim, a fim de dotar o encenador de matéria de trabalho a partir da qual nos irá orientar a melhorar determinados aspectos. Também é função do director da peça, fazer o registo das situações que vê nos ensaios. Porque o actor pode fazer cenas bonitas mas, por diversas razões, as mesmas podem vazar”.

Durante cinco anos, quando decorreu o projecto Cinema Arena, Horácio Guiamba interpretou papéis femininos. “Ela tinha a missão de sensibilizar outras mulheres em relação à necessidade de fazer o teste de HIV, bem como abordar o tema com os seus maridos. Então, em resultado disso, ‘acabei ficando senhora”. Nos anos seguintes, o actor recusou-se a interpretar papéis femininos.

Sozinho consigo mesmo

Guiamba é um dos actores moçambicanos, presentemente, mais rodados. Estima conversar e fá-lo por gosto. Para si, isso é quase um ritual. Mas depois disso, nas vésperas da actuação, ele isola-se. “Invento um momento em que fico sozinho”, diz e prossegue, “as coisas do nosso interior são muito difíceis de ser exteriorizadas, porque são o resultado de muitos fenómenos sociais que só se concentram no ego”.

Assim explica as razões de ter de se esquecer da provável pessoa que tenha espancado na rua, da dívida que tem para com aqueloutro, bem como dos seus problemas domésticos. Afinal está a caminho de um momento especial – a actuação perante um público que lhe quer ver a brilhar. O actor está seguro sobre um facto: “vou rebentar em palco”.

O seu momento de solidão que precede a actuação é – para Guiamba – um ritual terapêutico. Desde que a sua irmã, Dulce Bernardo, faleceu, em 2003, o actor manteve-se muito ligado a ela. Tem-na como uma deusa. “Peço-lhe para que me dê forças. E eu acredito que ela me ajuda porque tudo depende das nossas crenças. Nesse sentido as minhas actuações sempre têm sido bem-sucedidas”.

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