Quase 10 anos depois do ataque ao World Trade Center, em Nova Iorque, o líder da Al-Qaëda, Osama Bin Laden, foi morto na noite do passado domingo pelas forças norte- -americanas na cidade paquistanesa de Abbottabad, a 60 quilómetros da capital, Islamabad. De acordo com o site da CIA, o seu lugar deverá ser ocupado pelo número dois da organização, o médico egípcio Ayman Al-Zawahiri. A actualização dos números já foi feita: a cabeça desta espécie de Doctor No já vale 25 milhões.
O vídeo foi efectuado para ser propositadamente divulgado no dia 11 de Setembro de 2006, cinco anos depois do maior atentado terrorista da História. Nele, Ayman Al-Zawahiri surge vestido do branco, tendo como pano de fundo uma estante com livros. Na gravação, que a CNN divulgou, Al-Zawahiri afirmava que os recentes ataques de Israel ao Líbano deram toda a legitimidade à Al-Qaeda para “continuar o combate contra os infiéis”.
E acrescentou: “Os vossos dirigentes estão-vos a esconder a verdadeira amplitude do desastre”. Cinco anos depois destas declarações, sobretudo após o desaparecimento de Bin Laden esta semana, a ameaça mantém-se e há mesmo quem defenda que aumentou porque Al-Zawahiri é bem mais radical que o anterior líder.
Berço de Ouro
As origens de Ayman Al-Zawahiri não fariam supor que algum dia se pudesse estar diante do actual terrorista mais procurado do mundo. Ayman veio ao mundo no dia 19 de Junho de 1951 no seio de uma das famílias mais ilustres e respeitadas do Egipto. Do lado paterno descende de uma autêntica dinastia de médicos. Em 1995, o obituário de um jornal do Cairo, a propósito da morte de um tio de Zawahiri, menciona 31 membros da família como sendo médicos, químicos ou farmacêuticos.
Para além disso há igualmente embaixadores, juízes e membros do parlamento. Mas o nome Zawahiri está também há muito ligado à religião. Mohamed al-Ahmadi, tio-avô de Ayman, foi Grande Imã de Al-Azhar, a mais antiga e tradicional Universidade do Cairo, que ainda hoje continua a ser um dos mais importantes centros de ensinamentos islâmicos no Médio Oriente. O líder da instituição goza de um estatuto idêntico ao Papa no mundo islâmico, sendo al-Ahmadi recordado como um dos modernizadores da universidade.
O lado materno é igualmente ilustre. O avô foi presidente da universidade do Cairo e fundador da Universidade Rei Saud em Riade, na Arábia Saudita. Serviu igualmente como embaixador do Egipto no Paquistão, Iémen e Arábia Saudita. Um tio-avô da mãe foi secretário-geral da Liga Árabe.
Ayman cresceu no requintado bairro de Maadi, 25 quilómetros a sul do caos do Cairo, para onde os pais se mudaram pouco depois do seu nascimento. Uma parte importante da população do bairro era inglesa e, apesar da independência, os hábitos britânicos estavam ainda muito enraizados na comunidade local.
A vida social gravitava em torno do Maadi Sporting Club. Fundado no tempo dos ingleses, o clube era selecto quanto baste para não admitir judeus e mesmo a adesão de egípcios estava longe de ser fácil. Os pais de Zawahiri eram demasiado austeros e conservadores para frequentarem o clube. Preferiam o recato familiar à vida mundana.
Ayman cresceu num lar muito conservador e fechado, mas cá fora, o bairro fervilhava de cosmopolitismo. Na escola era um aluno brilhante, concentrado, sistemático. Sendo muito inteligente, conquistava facilmente o respeito dos professores que muitas vezes lhe pediam para os substituir na explicação aos colegas.
Por influência familiar a fé islâmica esteve também sempre presente na sua vida, nunca esquecendo diariamente as orações na mesquita Hussein Sidki, junto de casa.
Ainda na adolescência, depois de várias conversas com religiosos, é atraído para a Irmandade Muçulmana, um grupo não violento que pugnava pela criação da nação islâmica única constituída a partir dos estados árabes. Em 1954, o novo Governo egípcio, saído do chamado golpe dos “Oficiais Livres”, vê nas sociedades secretas religiosas uma ameaça contra o Estado e interdita-as. Seguem-se anos de violenta repressão.
Centenas de partidários da Irmandade são aprisionados e perseguidos, sendo alguns deles mesmo executados. Gamal Abdel Nasser está à frente de um estado laico e pretende a construção de uma sociedade de cariz socialista com forte pendor nacionalista. Cultiva- -se o pan-arabismo.
Médico com Fé
As perseguições aos islamistas obtêm resultados contrários aos previstos e é neste contexto que surge, em 1973, a Jihad Islâmica Egípcia. Ao invés da Irmandade, esta associação utiliza meios violentos para impor um governo islâmico. Zawahiri está entre os seus primeiros aderentes. Em 1974, Ayman conclui a licenciatura em Medicina e durante os próximos três anos irá exercer a actividade como cirurgião no exército egípcio.
Entretanto, casa-se com Azza Nowair, filha de uma ilustre família de advogados frequentadores do Sporting Club em Maadi. Subitamente, ao entrar para a faculdade, Azza torna-se profundamente religiosa. Passa a usar véu com cobertura total do rosto e a ler o Corão todas as noites. Casam-se em Fevereiro de 1978 no luxuoso Hotel Continental Savoy mas sem música e sem fotografias.
“As minhas ligações com o Afeganistão tiveram início no Verão de 1980 num entrelaçamento do destino”, escreveu Zawahiri no seu diário. Zawahiri estava a substituir um médico na clínica Irmãos Muçulmanos no Cairo quando o director lhe perguntou se ele queria acompanhá-lo ao Paquistão a fim de prestar auxílio médico aos refugiados afegãos. Poucos meses antes, no Natal de 1979, milhares de afegãos haviam atravessado a fronteira fugindo das tropas soviéticas invasoras. Mau grado o casamento recente, a resposta foi imediatamente positiva.
Zawahiri chegou a Peshawar, cidade fronteiriça paquistanesa, acompanhado de um anestesista e de um cirurgião plástico. “Fomos os primeiros árabes a chegar para cuidados médicos”, escreveu. Durante três meses trabalhou para o Crescente Vermelho, o equivalente à Cruz Vermelha no mundo ocidental. Cruzou várias vezes a fronteira rumo ao Afeganistão.
Foi dos primeiros forasteiros a tomar contacto com os mudjaidines. Admirou a coragem e a entrega de homens que se deslocavam em burros e que lutavam com armas da 1ª Guerra Mundial contra os sofisticados helicópteros, tanques e mísseis do lado soviético. Zawahiri regressou ao Cairo exaltado pelas histórias heróicas dos mudjaidines.
Desaparecido desde 1986
Em 1978, o Egipto foi o primeiro estado árabe a assinar a paz com Israel. Em Camp David, sob o olhar atento do presidente norte-americano Jimmy Carter, o primeiro-ministro israelita Menachem Begin e o presidente egípcio Anuar Sadat, assinam a paz. Ao reconhecer o estado hebraico, Sadat assinava também a sua sentença de morte.
Volvidos menos de dois anos, Sadat era assassinado à queima-roupa numa parada militar por elementos da Jihad Islâmica descontentes com o seu entendimento com Israel. Foi a mais espectacular acção dos integristas até então. Zawahiri participou à distância mas foi preso por posse ilegal de uma arma na violenta repressão que se seguiu ao assassinato presidencial. Seguiram-se três anos de cárcere.
As filmagens do julgamento dão ideia de uma ascensão rápida de Zawahiri no movimento. Nelas divisa-se Zawahiri de dedo em riste bramando contra o Governo laico: “Nós somos muçulmanos e acreditamos na nossa religião. Lutamos pela criação de um estado islâmico e uma sociedade islâmica.” Os restantes repetem em coro: “Só há um Deus!”
Depois da libertação, em 1984, Zawahiri volta a exercer medicina abrindo uma clínica no bairro de Maadi, onde passou a adolescência. Desse tempo o seu tio-avô Mahfouz Azzam, vice-presidente do Partido Trabalhista na oposição, guarda a memória de um bom pai de família, carinhoso, educado, apaziguador de conflitos e muito sensível.
Zawahiri não dispensou muito tempo a esta “vida normal.” Em 1985 voltou a trabalhar para o Crescente Vermelho socorrendo os mudjaidines afegãos que chegavam feridos às catadupas a Peshawar. Azzam conta que depois disso Ayman regressou mais uma vez ao Egipto e que desde 1986 nunca mais ninguém o viu.
O Encontro com Bin Laden
Foi no Paquistão, quando exercia medicina em condições primitivas – usava mel para esterilizar as feridas –, que conheceu Osama Bin Laden, um milionário saudita que recrutava e enquadrava guerrilheiros. O clique entre os dois homens foi imediato.
Possuíam muitas coisas em comum que era impossível não se sentirem próximos: ambos provinham de famílias ilustres nos seus países; ambos haviam recebido uma educação de primeira; ambos se tinham licenciado com distinção; ambos eram extremamente devotos; ambos eram bem-falantes e politicamente abafados pelos regimes dos seus países. E complementavam-se extraordinariamente: Bin Laden era um idealista, Zawahiri era um experiente propagandista e perito na organização de células secretas e na escolha de gente competente e de grande capacidade.
Por esta altura, os pensamentos de Zawahiri em relação à exportação de revoluções islâmicas começam a tomar forma. Rapidamente convenceu Bin Laden da necessidade de acções armadas para conseguir esses objectivos. Os fins justificam, sem sombra de dúvida, os meios. A influência entre ambos é mútua.
Al-Zawahiri estava para Bin Laden como “o que cérebro está para o corpo”, referiu Muntasir Zayyat, advogado que defendeu Al-Zawahiri quando este foi acusado de terrorismo no Egipto em 1999, sendo condenado por isso à morte. “Ele conseguiu moldar o pensamento e a mentalidade de Bin Laden fazendo dele, que não passava de um operacional da jihad afegã, um crente na ideologia da jihad mundial e exportador de revoluções islâmicas”, concluiu Zayyat.
Embaixador Itinerante da Causa Islâmica
No dealbar dos anos ´90, Zawahiri viaja intensivamente com passaporte falso para destinos tão díspares como os Balcãs, Áustria, Estados Unidos, Daguestão, Iémen, Iraque, Filipinas e até para a Argentina. Empenha-se bastante no conflito Bósnio ao lado dos irmãos muçulmanos da Europa contra os “infiéis” sérvios. As deambulações têm vários objectivos, como seja a organização de células terroristas, treino dos operacionais e recolha de fundos.
Em 1993, o Dr. Abdel Meuz é expulso do Paquistão por ordem do governo de Benazir Bhutto. Meuz – Zawahiri – não consegue driblar as autoridades paquistanesas sobre a sua verdadeira identidade. Na sequência de uma denúncia é expulso, acusado de implicação na tentativa falhada da Jihad para matar Benazir Bhutto. Entretanto, no Egipto, já pesa sobre si a condenação à morte por participação naquele acto fracassado.
O Sudão, país onde o radicalismo islâmico ganha cada vez mais peso, é o próximo destino. Bin Laden já lá está e é a partir dali que organizam várias acções contra o governo egípcio. A Jihad, então já com Zawahiri como chefe, reivindica vários atentados, todos eles fracassados. Primeiro contra o ministro do Interior, Hassan Alfi, depois contra o primeiro-ministro, Atef Sedki. Foi igualmente da responsabilidade deste grupo o ataque à embaixada do Egipto em Islamabad, em 1995 que causou 16 mortos.
Em Abril de 1995, numa reunião secreta em Cartum, a Jihad decide organizar o mais espectacular atentado: o assassínio do presidente egípcio Hosni Mubarak. É uma cartada arriscada mas os islamistas estão dispostos a jogá-la. O atentado é perpetrado em Junho de 1995, em Adis Abeba, na Etiópia, onde Mubarak estava em visita de Estado. À passagem do veículo oficial o tiroteio é intenso, mas ineficaz matando somente dois polícias etíopes.
As represálias não se fazem esperar. O governo do país dos faraós está, agora mais do que nunca, disposto a aniquilar a Jihad. São presos mais de 15 mil islamistas. Muitos deles desaparecem sem deixar rasto. Al Zawahiri responde arrasando à bomba a embaixada do Egipto em Islamabad, no Paquistão. Morrem 16 pessoas e mais de 60 ficam feridas.
O Ocidente como Alvo
Zawahiri sai definitivamente da sombra em Fevereiro de 1998, quando o seu grupo se junta ao de Bin Laden. Proclamam um novo combate ao Ocidente. Ambos pensam que é a política dos Estados Unidos em relação ao Médio Oriente a principal responsável pelos problemas naquela área do globo.
Os arquivos do tribunal federal de Nova Iorque, em relação aos bombardeamentos das embaixadas norte-americanas da África Oriental em 1998, referem-se a esta aliança como fundamental na guerra anti-ocidente e sobre o seu esforço de recolha de fundos nos próprios EUA. Sabe-se que Zawahiri esteve duas vezes neste país em meados dos anos ´90 para esse efeito.
Na sequência dos bombardeamentos americanos sobre o Sudão durante um encontro secreto entre Bin Laden, os chefes da Jihad egípcia, o Hezbollah e elementos do governo do Irão, Al-Zawahiri avisou: “A guerra só agora começou. Os americanos devem esperar uma resposta.” Não demorou muito a cumprir a promessa. Dois anos depois, a 11 de Setembro de 2001, o mundo assistia estarrecido ao maior atentado de sempre. Morreram cerca de 3500 pessoas.
Até hoje, o paradeiro de Ayman Al-Zawahiri permanece misterioso. Segundo uma fonte da CIA, agentes daqueles serviços estiveram muito perto de Zawahiri um mês antes do 11 de Setembro, quando este viajou para o Iémen para receber tratamento médico. Hoje crê-se que já possa estar fora do Afeganistão viajando com diversos passaportes falsos. Outro mistério que se mantém é se houve ou não participação sua nos atentados de Nova Iorque.
A família e os amigos afirmam que o médico egípcio nunca atacou civis inocentes e que a Jihad, ao contrário de outras organizações do género, só tem como alvo personalidades políticas. Mas o Mundo ocidental, o Mundo livre, não tem dúvidas sobre a sua participação nos atentados às Torres Gémeas e há muito que o elegeu como o cérebro do terror.