Fiquei a saber, depois de ele ter ido embora, que se chamava Solomoni. Falava no palanque como um arauto do próprio Jeová e, quando desceu, deu as costas aos que o escutavam e desapareceu como Jesus fez na sua ascensão, 40 dias depois da ressurreição. Era espectacularmente longilíneo, pernas ligeiramente arqueadas, e a cadência da marcha que imprimia dava a imagem de um homem determinado. Sublimou-se sem olhar para trás uma única vez, perante o espanto dos que, provavelmente, voltarão a vê-lo e ouvi-lo falar como trovão no estrado.
Desta vez, também, como das outras tantas, traz dependurada no ombro esquerdo uma sacola de couro trabalhado com arte negligente. Num dos bolsos das calças do tipo “botsotso”, igualmente de couro que enverga, está acondicionado um cantil que leva de tempos-em-tempos à boca. Bebe e fecha a tampa enquanto pensa nas próximas palavras que saem em enxurradas.
Fecha o cantil e devolve-o ao enorme bolso e continua a bramir: “Porventura conheceis os lugares onde nascem os ventos? Acaso sabeis para onde vão quando passam? Quem sois vós para procederes como se tudo o que falais fosse a pura verdade? Como é que vos entregais à veleidade de semear cactos nesta terra maravilhosa deixada pelos vossos antepassados?
Quem vos disse que depois desta desgraça que espelhais em todos os lugares com o intuito de preservardes a vossa opulência o que vai sobrar é a alegria dos vossos filhos? Porventura vos lembrais de que filho de cobra é cobra?
E que por ser filho de cobra também será perseguido e morto como todas as cobras que atravessam o caminho dos humanos? Quem sois vós para desrespeitardes os preceitos da partilha em nome da vossa ambição sem limites? Será que fostes vós que colocastes os fundamentos desta terra que habitais em liberdade? Quem vos disse, a vós, que os pirilampos têm que ser mortos só porque brilham? Seus pobres de espírito!”
Solomoni leva de novo a mão ao bolso e retira o cantil levando-o à boca perante um silêncio que parece vir das tumbas. Fala sem microfone, mas a sua voz poderosa, ao bater nas paredes dos prédios, ecoa com mais energia e penetra no interior dos “chapas” que circulam em toda a cidade, criando medo nos passageiros e nos próprios “chapeiros” que não se cansam de violar o código da estrada e faltar ao respeito às pessoas que pagam para chegar aos seus destinos.
A voz de Solomoni ribomba pelas barracas onde se bebe cerveja e outras bebidas sem nome que vão definhando o corpo e a alma da juventude e, mesmo assim, ninguém pára de consumir o líquido irresistível para a maioria, onde os pobres encontram, sem saberem que é uma sensação falsa, o desafogo. Cada vez que ouvem as parábolas de Solomoni, os bebedores devoram mais o conteúdo para aclarar a audição e a mente. E o homem parece exausto no palanque.
Mesmo assim continua a trovejar na tentativa de demover os senhores do caminho do sangue e deporem as armas: “Deitai esses artefactos ao lixo. Inventai canções bonitas no lugar de vociferardes. Atirai flores para o interior dos carros e camiões, em vez de aspergerdes pólvora. Subam a essa linda serra e abraçai-vos uns aos outros, porque ainda sois irmãos”.