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Afinal, o infecundo era o marido

Afinal

A inexistência de um filho, depois de tantos anos de matrimónio, continua em pleno século XXI a instigar conflitos desastrosos nas famílias modernas. Na peça “Yerma”, um grupo de formandos em teatro da ECA apresenta esse drama de forma desembaraçada.

Em Yerma, numa miscelânea de acção, drama e tragédia, uma dezena de actores denuncia as “mil e uma” ostracizações que são impostas à mulher ‘seca’,numa sociedade moderna, porém, preza ao conservadorismo tradicional.

Opostamente à mulher, o que se deve infligir ao homem, caso na relação conjugal for este o infecundo? Deverá ser vilipendiado? Marginalizado? Apedrejado em praça pública? Ou então (pior ainda), simplesmente, morto?

O primeiro grupo de formandos em Teatro e Dramaturgia na Escola de Comunicação e Arte (ECA) que, depois de quatro anos de uma militância intelectual intensa, finalmente, este ano, irá abandonar a academia para enfrentar os temperamentos da arte no mercado nacional, propõe-se dar resposta a estas – bem como a tantas outras – indagações que advêm das complicações que a infertilidade feminina ou masculina (esta incapacidade de perpetuar a espécie, através da reprodução) acarreta nas famílias.

Na verdade, trata-se da exibição da peça teatral “Yerma”, uma obra secular criada pelo conceituado escritor espanhol Frederico Garcia Lorca, que marca a projecção de (mais) um grupo de actores profi ssionais. A peça será exibida a partir deste fim-de-semana no Centro Cultural Universitário (CCU) em temporada que durará atéNovembro.

A obra que discute a questão humana, sociologicamente intrigada pela inefi cácia dos “contactos primários”(a sexualidade) de que surge a improdutividade, não aparta o homem, no entanto, revela-se um puro tributo à mulher.

A dois dias para o início da temporada – cuja primeira exibição realiza-se este domingo – @Verdade presenciou o último ensaio dos actores, tendodiscutido sobre alguns aspectos com Mauro Vombe que, em paralelo com a actriz e encenadora Nilza Laice, sob orientação do professor Victor Gonçalves, encenaram a obra.

Yerma, numa questão estratégica

Com um total de 11 actores, dos quais sete são mulheres, nomeadamente Angelina Chavango, Lucrécia Noronha, Kátia Balate, Maria Atália, Quinilda Igreja, Rosa Poeira e Violeta Mbilale, do lado masculino interagem Ambrósio Joa, Horácio Guiamba e Momade José.

A abundância de mulheres deve-se o facto de Yerma retratar o tema da mulher, e Moçambique ser um país cuja população feminina é a maioria. Mas, o facto de a Cooperação Espanhola ter financiado o projecto é o ponto estratégico que determinou a selecção da obra.

Todavia, apesar da força dos factores estratégicos acima mencionados, o que vinga mesmo é a actualidade e intemporalidade da obra, sobretudo porque, ainda que tenha sido escrita por um autor europeu, Garcia Lorca, a protagonista da mesma (Yerma) é uma metáfora da mulher do mundo. Ou seja, não se trata, necessariamente, de uma mulher espanhola.

E mais, o tema da esterilidade – retratada em cena, como que originando uma série de desavenças entre os cônjuges – é um problema da humanidade e não somente da sociedade espanhola, chinesa ou moçambicana.

“Nós, como homens ou mulheres, o que nos faz sentircomo tais (depois do casamento) é a possibilidade de procriar, de ter filhos. Todos estes factores contribuíram para que não fosse difícil encontrar ou introduzir aspectos da vida social típicos de Moçambique no texto Yerma”, conta Vombe.

Aliás, para o actor, “na nossa sociedade é frequente encontrar- se mulheres que inventam gravidezes, como forma de assegurar que os maridos não lhes abandonem”. Por exemplo, muito recentemente, a imprensa reportou o caso de uma mulher com uma gravidez farsante. Portanto,“uma cena teatral da própria vida que foi descoberta”.

De facto, a obra de Lorca é intemporal. Foi escrita na Espanha, de acordo com uma realidade local – utilizada no passado, é explorada na actualidade e será exposta no futuro – transvazando os limites espácio-temporais.

Vítimas da educação que se prega

Em Yerman, as mulheres são descritas como que assumindo uma posição de “correia transmissora dos valores herdados, mesmo quando são, desses valores, as principais vítimas”. Sobre o exposto, fazemos do interlocutor um exemplo para melhor compreensão.

“Por exemplo, eu sou jovem,” diz Mauro e continua:“Se repararmos para a minha herança cultural, em termos de educaçãoque possuo, percebe-se que herdei de uma mulher, a minha mãe. As mulheres são as principais difusoras da educação e cultura”.

Ora, contrariamente a isto, se olharmos para as nossas famílias, perceberemos que os homens têm a tendência de abandonar algumas práticas tradicionais dos antepassados. Mas as mulheres, por seu turno, são mais conservadoras. Teimam em cuidar dos filhos, em ser as donas de casa, por aí em diante. Lutam, portanto, para a manutenção dos valores e práticas. Infelizmente, muitas vezes, acabam por se tornarem vítimas.

Levando esta opinião ao extremo, o actor questiona as tendências do “lobolo” nos dias actuais. É que para si, “enquanto as mulheres lutam para conservá-lo, os homens remam contra a maré”. Isto percebe-se a partir do momento em que ultimamente se concebe como uma forma de “os homens se apoderarem da mulher, de comprá-la e fazerem o que quiserem dela”.

A corda rebentou do lado mais forte

Em Yerma, sobretudo no seio do casal em que a história gravita, o homem é que é estéril. Mas, não ciente do facto,a mulher é que sofre. Julga-se que é infecunda e é acusada de tal.

E mais, a realidade – a par do exposto na peça – impele-nos a assumir que, na prática, quando a mulher não pode conceber, não raras vezes, é vítima da reprovação da sociedade. É vituperada e desprezada. Há casos inclusive em que a mulher chega a ser abandona pelo marido porque, pior ainda, a sua família aconselha-o para o efeito.

Outro aspecto a ter em conta é, curiosamente, no caso de ser o homem o infecundo, o facto de a mulher não fazer muito alarido, tão-pouco opções, além de se contentar com a sua sorte. Ela luta pela preservação do lar. “Mas nós, os homens, já não conseguimos fazer o mesmo”, critica.

Como tal, sendo que, em Yerma, a figura masculina é que é infecunda, o homem alimenta a falsidade durante toda a vida, o que faz com que a mulher passe longos anos ansiosa perante a indiferença do marido que não lhe diz a verdade.

A consequência – grotesca e grave – é que depois de recorrer aos curandeiros e esgotar todas as possibilidades para solver o problema, a mulher descobre que de facto o marido é que não podia ter filhos. Então, “se ele não podia fazer filhos, tendo a consciência do facto e, mesmo assim, não consegue assumir a situação como realidade, signifi ca que não é bom marido, não tem utilidade”. A mulher mata-o.

Perante este desfecho macabro, há quem pensa que o essencial da história não é tanto a solução engendrada pela mulher. Ou seja,matar o marido. Mas sim e, acima de tudo, a lição sobre o que pode advir depois da expectativa (gorada) de uma mulher nas relações conjugais.

Matar o marido, pode ser literal – como o é na cena – mas também pode ser uma metáfora do poder da mulher. Como quem diz, a mulher pode suportar (todas) as vicissitudes de uma situação penosa, como um casamento fracassado. No entanto, no dia em que ela se farta da situação, de facto estará cansada. E ninguém poderá segurá-la.

Por exemplo, em Moçambique, os homens podem trair a mulher todos os dias. Mas no dia em ela fizer o mesmo, o caso toma um cariz deveras penoso e lamentável. Não restam dúvidas – como se nos apresenta – que se as mulheres moçambicanas se reunirem para resolver determinado problema social conseguem ultrapassá-lo. Recordemos um exemplo da comédia Lisístrata.

Na peça Lisístrata – de Aristófanes, escrita no século V a.C., interpretada pelos estudantes da ECA – as mulheres reuniram-se para fazer greve de sexo para acabar com a guerra. Indo à guerra, os homens levavam os seus filhos, e voltavam depois de muitos anos, encontrando as suas esposas muito idosas, o que fazia com que as trocassem por outras mulheres mais novas. Até que as mulheres, para evitarem que tal fenómeno prevalecesse, decidiram fazer uma greve de sexo. E assim aconteceu.

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