Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

A tragédia que suscita curiosidades…

Ao fim de mais de cinco mil segundos de documentação em imagem, nenhum leigo em história política do Chile se conformaria em permanecer no estado de ignorância. Afinal, em “Nostalgia da Luz”, mais do que tentar iluminar um povo rico em cicatrizes de uma dura ditadura de Pinochet, o conceituado realizador chileno, Patrício Guzmán, desperta a curiosidade de quem assiste ao filme.

Um trabalho cinematográfico de ficção científica, simplesmente vulgar e assaz desinteressante. É com esta impressão que se fica nos primeiros minutos do documentário “Nostalgia da Luz”.

No entanto, a posteriori, o que sucede é uma série de metamorfoses sociais, mutações sociopolíticas, resultado de longos anos de uma ditadura perversa, assim como de políticas desumanas adoptadas por Augusto Pinochet. As milhares de vidas humanas – muitas das quais de presos políticos – arruinadas nos campos de concentração, modifi caram o panorama social dos cidadãos chilenos.

Retratando – com exemplos reais – as operações que, a seguir, se operaram no Chile, sobretudo as mulheres que, não se conformando com a perda injusta dos seus familiares, passaram longos anos – até os dias actuais – na busca daquilo que a morte imposta lhes arrancou.

Muito recentemente, a obra foi apresentada em primeira mão, em Maputo, no âmbito do 6º Festival Internacional do Filme Documentário (Dockanema), que decorre até o próximo domingo.

No dia da primeira projecção, realizada no Centro Cultural Universitário, ninguém, em condições normais, foi incapaz de se sentir impelida a reflectir sobre os problemas sociais do Chile, em particular, mas, acima de tudo, sobre a história moderna e contemporânea da humanidade. Afinal, igual a um cartão-de-visita, Patrício Guzmán induz, através da “Nostalgia da Luz”, os apreciadores da sua obra a debruçarem-se sobre a questão da sua “pátria amada”.

Mudança de paradigmas

Diante da “Nostalgia da Luz” não tivemos, por diversos motivos, como abandonar a ideia da ficção científica cinematográfica. Associando um retrato melancólico, sadiamente exagerado, à realidade do deserto do Atacama, no Chile, de uma abundância de telescópios, o interesse nas pesquisas astronómicas e arqueológicas do país remete-se à ideia da ciência. Chega-se a ter a impressão de que o Chile – este país latino-americano – é um verdadeiro caos à beira do desaparecimento.

Como tal, segundo o filme, somente duas profissões – astrologia e arqueologia – possuem um grande prestígio no Chile. É que, entre as personagens que engrandecem o enredo com os seus depoimentos, se não são astrólogos, então são arqueólogos.

Aliás, no caso das mulheres, não haveria melhor opção em estudar um pouco de arqueologia, já que, somente depois de conseguirem alguns restos esqueléticos humanos em função das indicações, chegaram a ter a certeza de que os seus entes queridos, bastas vezes lançados no mar, estavam de facto mortos.

Depois de inúmeras escavações, sem sucesso, feitas pelos seus compatriotas à procura dos corpos dos familiares, Guzmán não teve opção diferente, além de abandonar as suas crenças e mudar os paradigmas de raciocínios. “Sempre acreditei que as nossas origens estavam ligadas à terra, mas agora acredito que a origem humana pode estar ligada à luz”, revela.

Isto faz com que algumas das mulheres defronte da ineficácia dos instrumentos que utilizam para escavar a dura terra do deserto de Atacama, não raras vezes deixem de almejar a invenção de um telescópio para “escavar” ou penetrar o âmago da terra.

Na verdade, em “Nostalgia da Luz”, o interesse quase antropológico que se tem em relação aos fenómenos celestes emana de um incidente. “Uma terrível tempestade que, não bastasse ter devastado quase todo o país, despertou o gosto dos cientistas de todo o mundo pelos fenómenos astronómicos, lunares e siderais”. É assim que se começa a narrar a história.

Um contraste constante

Durante os anos em que vigorou a ditadura de Pinochet, sobretudo nos anos ‘70, o filme reporta que numa semana era possível que três mil pessoas fossem mortas. No entanto, paralelamente à vida – um bem natural, uma dádiva divina – que se acredita não existir nenhum recurso material com o qual se possa comprar, na nossa idade, assiste-se a uma simples desvalorização.

Por exemplo, no seu filme, Patrício Guzmán conta que, quando jovem, a sua mãe costumava levá-lo ao Museu da História Natural para visitar um enorme esqueleto de uma baleia.

Inversamente, no Chile, documenta o filme, há um edifício em que se encontram conservados (no interior de caixotes) alguns restos mortais humanos. E questiona-se: “Quando é que tais esqueletos serão sepultados ou merecerão algum museu?”

A metáfora de Chile

Apesar de haver uma série de coisas boas por recordar sobre Chile, a grande maioria é das que merecem um eterno esquecimento. Patrício Gusmán faz de Anita e Miguel (um casal chileno idoso – ela, uma memória e ele, um esquecimento, porquanto sofra de mal de Alzheimer) uma metáfora de Chile. Lamentam, porém, que “as pessoas olham para nós como se fôssemos um problema. Somos a lepra do Chile”.

Estas e outras razões fazem com que, na metáfora da astrologia, “quando comparados às galáxias, os problemas do Chile pareçam insignificantes, mas uma vez colocados à mesa sejam iguais ou maiores que as galáxias”. Com cerca de 90 minutos, com estas palavras Guzmán termina em apoteose a sua obra de sétima arte que suscitará muita discussão salutar.

Dockanema

Assim, através da “Nostalgia da Luz”, realizado em 2010, arrancaram as exibições do 6º Festival Internacional de Filme Documentário (Dockanema) que este ano irá prestar tributo, das mais variadas formas, ao realizador afro-brasileiro, Ruy Guerra, pelo papel que teve na edificação do cinema moçambicano. No entanto, contrariamente aos outros realizadores, o autor de “Nostalgia da Luz”, Patrício Guzmán, não conseguiu deslocar-se a Maputo.

Na sua mensagem de felicitação ao Dockanema, insistiu na necessidade de se desenvolver e incrementar o cinema documentário nas nações, porque, afirma, “um país sem documentário é uma casa sem fotografia”.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts