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A senhora da voz melodiosa

A senhora da voz melodiosa

É a voz que se ouve quando se liga o rádio, a pessoa com quem se fala quando sintonizamos a Rádio Moçambique. Trata-se de Glória Américo Fungate Muianga, no assento de nascimento, mas poderia perfeitamente chamar-se ‘voz’.

Há figuras que brilham de forma vibrante e fazem parte da vida de milhões de pessoas, para onde entraram com a mesma naturalidade dos parentes mais próximos, e cujas carreiras expostas nos meios de comunicação correm o risco de nos distraírem das suas qualidades. E uma destas estrelas fulgurantes é Glória Muianga, nome incontornável quando se fala de rádio em Moçambique. Habituámo-nos à sua presença quando sintonizamos a antena nacional. O resto é, diga-se de passagem, mistério.

O país inteiro rende-se à sua voz, pelo menos o Moçambique ligado à emissora de rádio pública nacional e à telefonia. Mesmo quando a ouvimos naquela situação em que nos diz – a única coisa que um usuário de telemóvel não quer ouvir – para ligarmos mais tarde porque “neste momento, não é possível estabelecer a ligação que deseja”.

Recebe-nos no seu “quartelgeneral”, Rádio Moçambique (RM), numa sala ampla ao meio da tarde de uma terça-feira. Visivelmente bemdisposta, cumprimenta-nos em grande animação, mas mostra-se impenetrável. Até porque não sabia o assunto da entrevista, o que a levou a pensar que nos pretendíamos inteirar dos 35 anos da RM, razão pela qual já se havia preparado na véspera.

Mas descontrai-se quando lhe dizemos que ela era o motivo da nossa presença naquele lugar. “O que querem saber sobre mim?”, questiona, na sua típica voz forte antes de soltar um sorriso de surpresa. Gosta de comunicar e de se fazer ouvir, o que faz dela uma boa entrevistada.

A infância

Nasceu na cidade de Maputo e, tal como as suas irmãs, muito cedo tornou-se órfã de mãe, mas nem por isso deixou de ter uma infância feliz. “Quando a minha mãe faleceu, eu tinha seis anos e a minha irmã mais nova tinha alguns dias de vida”, lembra.

O seu pai, na altura electricista de uma unidade sanitária, vê-se na difícil situação de educar cinco meninas menores de idade, uma das quais recém-nascida. Graças à ajuda de algumas freiras da enfermaria na qual trabalhava e parentes mais chegados cuidou da mais nova, as mais velhas foram matriculadas num colégio destinado a pessoas desfavorecidas.

Naquele local, o tratamento não era dos melhores, razão pela qual a sua avó decidiu retirá-las, mas a situação continuou complicada. Mais tarde, o seu pai consegue vagas num colégio para as suas filhas, mas, como um mal nunca vem só, naquela casa de educação só eram admitidas crianças com uma certa idade. “Tivemos de esperar que a minha irmã mais nova crescesse um bocado e só depois fomos todas para o colégio”, conta.

Foi na Casa de Educação da Munhuana, um centro que albergava crianças de todas as raças e estratos sociais, onde Glória Muianga teve a sua instrução. Para além da educação propriamente dita, aprendeu algumas tarefas domésticas e actividades como teatro, canto e a tocar alguns instrumentos musicais.

Porém, nem tudo era um mar de rosas. “Passámos mal, isoladas e longe da família. Mas isso forjou-me, hoje sou a pessoa que sou e sei fazer um pouco de tudo. Quase todas as minhas excolegas do colégio são hoje pessoas com uma postura batalhadora e abertas a aprender graças à educação que recebemos”, observa.

O “casamento” com a rádio

Glória Muianga não abraçou a rádio por influência de terceiros. Aliás, ser locutora nunca passou pelos sonhos de menina, até porque julgava que a sua voz era demasiado grave e forte. Trabalhou como administrativa, foi aspirante na função pública e, mais tarde, foi funcionária numa biblioteca na Universidade Eduardo Mondlane.

Mas quando se dá o golpe de Estado em Portugal em 1974, tornou-se possível mudar de emprego e Glória foi parar na RM, muito longe de pensar que tinha jeito para ser locutora. “Eu vim precisamente por mero acaso. E nunca tinha prestado atenção para o facto de que a minha voz se adaptava ao trabalho que faço, foi uma surpresa”.

Na RM, por causa dos turnos, viu-se obrigada a interromper os seus estudos e começou a dedicar-se apenas ao trabalho, numa época em que se vivia a euforia da independência e uma nova experiência, não restando tempo para nada. “Deixámos os estudos e dedicámonos à revolução e à própria rádio”, comenta.

Vinte anos depois, volta aos bancos da escola para fazer o instituto comercial. Hoje é técnica média de contabilidade, embora não esteja a exercer esta aptidão porque abraçou a profissão de locutora de rádio. Convites para trabalhar na área de formação não faltaram, recusouos todos porque “o que eu sei fazer bem é comunicar e fazer rádio” e não passa pela sua cabeça a ideia de mudar de profissão.

A primeira vez

Chegou à RM como administrativa numa altura em que se exigia muito dos jovens, uma vez que grande parte dos profissionais havia deixado o país e era necessário preencher as vagas existentes. Nos primeiros dias mandaram-lhe escrever um texto sobre independência de Moçambique. “Foi canja, escrevi tudo aquilo que eu sabia”.

E depois veio aquele frio na barriga quando lhe disseram para ir ao estúdio ler o que havia escrito. “Nunca tinha feito um teste de locução, até porque tinha complexo da minha voz, mas ‘meti-me’ no estúdio e fui fazer a prova”. Vi tantos botões que pensei: eu não vou conseguir trabalhar num estúdio desta natureza”, conta, mas meses depois de muita aprendizagem e dedicação, já se sentia capaz de fazer uma emissão.

Muianga, diga-se, aproveitou os cinco minutos daquela redacção e nunca mais parou. Quando saiu do estúdio disse para si mesma peremptoriamente: “Quero fazer isso para o resto da vida”, pois tinha ficado com a sensação de que havia feito uma boa prova. E, volvidos muitos anos, a certeza ainda se mantém.

Passados alguns dias, saíram os resultados comprovando o seu palpite: tinha sido aprovada para fazer um estágio. Glória Muianga conta que o tempo de aprendizagem era muito longo porque tinha de se seguir os passos dos mais velhos nos primeiros seis meses, só depois é que se faziam as gravações no estúdio. “Fomos fazendo pouco a pouco, não é como hoje em dia em que se entra e já se começa a fazer tudo”.

Na altura o país encontravase em profundas transformações e a informação tinha de ser outra, razão pela qual se exigia muita atenção e técnica na locução. “Os portugueses tinham uma forma de falar dos acontecimentos, nós devíamos dizer de outra maneira e tivemos de aprender a ler os noticiários e as crónicas”, diz e acrescentando que “aprendemos também que quando se entrava para a rádio não nos tornávamos automaticamente estrelas. Comecei a ler os noticiários um ano depois e, inicialmente, éramos proibidas de pronunciar os nossos nomes”.

Os dias eram passados na rádio, não tinha horas para entrar e muito menos para sair, mas pouco importava. “Naquela altura, tínhamos sede de aprender. A profissão de locutora de rádio exigia muita dedicação, aprendíamos como utilizar as palavras”.

Ascensão

A sua ascensão na rádio ganhou certo dinamismo com o programa radiofónico Uma Data na História, um historial sobre os países e acontecimentos no mundo. Escolhiam-se os temas, e os assuntos pouco diziam respeito a Moçambique, pois não existia informação. “Naquele período, era difícil obter, ou seja, não havia informação, mas hoje com a Internet tudo ficou fácil”. Apesar das difi culdades, trabalhavam com as informações de que dispunham e, pouco a pouco, foram fazendo um acervo com informação e música sobre a realidade moçambicana.

Quando chegou à Rádio Moçambique, o país já estava independente há poucos meses e “foi excitante viver essa experiência”, comenta. Nas datas mais importante do país, a RM tinha de estar sempre à frente e, consequentemente, ela também devia. “Eu era sempre a vítima; Glória vai para ali e acolá”. Já apanhou vários sustos durante o trabalho e foi aprendendo com os erros – claro! “Quando me esquecia de alguma coisa, tinha de arranjar uma saída, mas tudo corria bem, afi nal era um trabalho de equipa”.

Quando questionada sobre o momento mais desafi ante diz, com a modéstia devida, que foi aceitar o repto dos funcionários tendo em vista apontá-la para administradora da rádio; ser destacada para apresentar sessões de gala quando havia uma visita presidencial. “Foi uma das coisas que tive de aprender do nada, pois não havia uma escola para te ensinar. Era preciso saber a quem é que te vais dirigir primeiro. Eram os ministros que ajudavam. Na altura, Samora Machel era muito exigente”.

E a morte do primeiro Presidente de Moçambique foi outro momento marcante. “A morte de Samora Machel marcou-me muito porque era algo que não veio logo à superfície. Não tínhamos informações seguras do que havia acontecido, sabíamos apenas de que o avião ainda não tinha chegado. Tivemos de mudar a música, normalmente quando havia esse tipo de notícia tocávamos música clássica, e os ouvintes apercebiam-se de que aconteceu algo de errado. Mais tarde, veio a confi rmação e ninguém queria acreditar”, lembra com nostalgia.

“Não me considero estrela”

Glória, que desde cedo deixou transparecer o à-vontade com que se movimenta na área de comunicação, não se mostrou relutante à passagem do sistema analógico à digitalização, embora considere ter sido uma mudança difícil. “Foi difícil assim como era difícil manejar a bobina. Mas diferentemente da bobina, as novas tecnologias exigem mais de ti. Tive de me adaptar”.

Sente-se dentro dos desafi os da própria empresa. “Desde 1975 até hoje, a RM cresceu muito. Um dos desafi os é cobrir o país com uma qualidade desejável, estamos a lutar para que se torne possível e como rádio pública tem esse dever de chegar a todos”, diz.

A caminho da reforma, o que já devia ter acontecido, Glória Muianga quer dar um contributo para um bem comum, sobretudo na formação de jovens aspirantes à profi ssão de locutor. Não se sente realizada visto que, segundo as suas próprias palavras, “para este tipo de profi ssão a pessoa nunca está realizada porque há uma necessidade de aprender todos os dias”.

Não se considera estrela e não se envaidece quando escuta a sua própria voz, porque habituaram-na desde cedo a não se julgar vedeta ou melhor do que os outros. “Eu não tenho tempo de saborear a minha própria voz. Isso de telefone não é caso para me envaidecer, eu acho piada e as pessoas também brincam com isso dizendo que ´não gostamos de ouvir a voz da Glória quando diz que não temos crédito`. Mas é algo gratifi cante”.

Para a comunicadora e produtora, ser-se um bom locutor é difícil e não basta terse muita força de vontade e boa voz, é preciso preencher certos requisitos dentre os quais saber ler, ter cultura geral, fazer-se perceber e treinar constantemente a dicção. Por isso, afi rma que actualmente os jovens têm a obrigação de ser melhores comunicadores porque dispõem de quase tudo à sua volta. “Antigamente, não tínhamos escolas para nos formar, cursos, seminários ou Internet”, comenta.

Olha com bons olhos a proliferação de rádios privadas porque “isso obriga-nos a ter de melhorar a nossa qualidade e exige-nos muita responsabilidade”. Mas lamenta o facto de a maior parte dos locutores ser descuidada no que respeita à investigação e aperfeiçoamento do seu trabalho.

Diz que não faz um ritual entanto que tal para manter a voz em forma, mas, sendo um instrumento de trabalho, procura tomar alguns cuidados e esporadicamente faz uma visita ao médico.

O seu dia-a-dia

Há vários anos que a sua rotina tem sido a mesma de segunda a sexta-feira. Pouco antes das 8h00 da manhã já se encontra no seu posto de trabalho e deita-se tarde, porque passa o tempo a ler e a ouvir música. Fica no horário corrido e, raras vezes, vai à casa na hora do almoço. Não está no activo, quer dizer, não está a fazer emissões todos os dias, e, ainda assim, tem estado ocupada.

“Agora faço parte da administração, trato mais da parte burocrática. Não estou na área da comunicação, e isso ocupa-me a maior parte do tempo”. Embora estando no Conselho de Administração da empresa, Glória Muianga reserva um dia para se dedicar ao que mais gosta de fazer: ler o noticiário e apresentar um programa. E ainda arranja tempo para se apresentar como mestrede- cerimónias em eventos sociais.

Nos tempos livres desdobra- se entre assistir a uma palestra e participar em seminários. Gosta de passear aos fi ns-de-semana e, quando pode, vai ao campo cuidar da sua machamba, além de apreciar algumas secções culturais, espectáculos musicais e convívios com os amigos. Não pode estar com os seus dois netos, pois estes vivem fora de Maputo.

Mãe de dois filhos (agora casados), um dos quais o ex-futebolista internacional Mano-Mano, a locutora, conhecida como mulher de voz bela e melodiosa, casou- se relativamente cedo, contava ainda 18 anos de idade, altura em que já havia concluído o curso de contabilidade na escola comercial.

Ultrapassou com facilidade alguns obstáculos no percurso da sua carreira. Teve de adaptar a sua vida à carreira profi ssional de modo que o papel de mãe não falhasse. “A rádio e a família exigiam muito de mim. Tinha de fazer madrugadas e fins-desemana, mas graças à ajuda dos empregados consegui. Aliás, habituei-me a não ter domingos para estar em casa ao lado dos familiares, mas aproveitava sempre os dias de folga”, revela.

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