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Pandza: A morte

A morte, para mim, é mais do que um buraco negro que nos engole e desintegra eternamente. É mais do que aquele lugar escuro para onde se diz que vamos depois de vivos, pagar a factura dos nossos pecados. Também não é aquele lugar ajardinado onde, entre flores, borboletas, maçãs e serpentes, coabitaremos eternamente com os nossos ancestrais e os míti cos personagens da Bíblia. Para mim a morte é apenas uma oportunidade, nua e crua, de ganhar algum.

Pelo custo de vida, os dias não estão para os menos espertos. Na selva em que (sobre)vivemos as leis são dos mais fortes. Financeiramente fortes. Eu sou dos mais fracos (ou menos fortes?), mas dotado de mimeti smos que me permitem disfarces financeiros de que sobrevivo. Por outras palavras, sou biscateiro.

Faço biscates tais que, de tão originais, não tenho concorrência. Trabalho com a morte (dos outros). É uma ocupação com expediente intenso porque não há dia em que não se morra, não há dia em que não se enterre alguém.

Diariamente frequento cerimónias fúnebres. Recorto dos jornais a página de necrologia, documento que me orienta nas minhas investi das diárias, é mais ou menos a minha agenda. Casaco e gravata disfarçam-me a elegância esfacelada. Vou à casa mortuária, escolho a capela com velório mais concorrido e muito chorado. Quanto mais gente e mais choros maior são as chances de me infiltrar com sucesso.

Infiltro-me no ambiente em pranto e acompanho todo o cortejo fúnebre. Na cerimónia, aproximo-me dos lugares com protagonismo, onde os familiares mais chegados se reconfortam. Encosto-me a eles, choro com eles e com eles sou consolado, com abraços e mensagens de pêsames. Pelo meu aspecto insuspeito, quem me vê ali, inconsolável, não me crê intruso.

Para os familiares da esposa, devo ser da parte do esposo, aquele familiar distante que nunca ti veram a oportunidade de conhecer. Para os familiares do esposo sou da parte da esposa, ou da amante. Os mais novos nunca conhecem todos os ti os. E quanto mais vivido o morto, maior o número de familiares.

Há sempre autocarros que os serviços dos familiares mais chegados disponibilizam. É neles que me faço transportar, acompanhando o cortejo para o cemitério e depois para a casa do morto, onde se passam dias de missa, o mesmo que dizer dias de refeições gráti s para mim.

Chegados à casa do morto, lava-se as mãos numa bacia colocada à entrada, como reza a tradição, lavando-nos das más poeiras que trazemos do cemitério. Há cadeiras para os homens e esteiras para as senhoras, sentamo-nos em poses tristemente resignadas e lamentamos aquela perda com cânti cos muito religiosos.

Aqui, já sou prati camente da família. Solicitam-me, às vezes, com respeito, para tarefas como orientar as arrumações ou sou promovido a mediar possíveis conflitos familiares, e todos me ouvem por causa do meu ar insuspeito e adulto.

Uma mulher esvoaça a capulana circulando entre os presentes com um recipiente de água morna e um pano quase toalha, pendurado no braço, onde higienizamos as mãos. É o prenúncio da refeição. Interrompem-se as tristezas para se poder comer. Não se chora de boca cheia.

O luto exige que se cubra a excentricidade dos móveis com lençóis discretos. Apalpo os panos adivinhando os electrodomésti – cos. No bolso interno do meu casaco cabe até um leitor de DVD.

Há sempre o quarto principal da casa, onde as senhoras guardam as carteiras e os telemóveis. É lá onde se guarda o dinheiro da colecta, aquele prato que circula entre os presentes, e se contribui para as despesas da cerimónia. Às vezes consigo lá chegar.

Não se pode dizer que ganhe mal. Mas há dias maus. Hoje, por exemplo, esbarrei inesperadamente com o velório de um conhecido. Estava num velório e, sem dar costas ao caixão, fiz uma aproximação lateral, a caranguejo, para um fulano isolado, procurando subsídios para a minha acti vidade. Fiz aquele ar inócuo de pesar e perguntei quem era o falecido, como se me ti vesse enganado no velório.

– Desculpe este velório é do…?

– Moçambique! – respondeu baixando o olhar.

– Epa, Moçambique? Moçambique morreu? – Assustei-me com a má nova.

Respondeu que sim, abanando a cabeça, com uma expressão inconsolável. Eu despi luto profissional e vesti luto real. Em velórios de ente queridos eu não trabalho. Com família não há negócio.

– Mas… morreu de que? Acidente?

O homem não conteve as lágrimas, e sob o fundo musical dos cânti cos religiosos que embalavam o morto, respondeu-me, mais soluçando que falando:

– Não, morreu de corrupção!

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