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A melhor maneira de alfabetizar alguém é ensinar a ler e a escrever na língua que ele fala, afirmam fundadoras da Associação Progresso, laureada pela UNESCO

A melhor maneira de alfabetizar alguém é ensinar a ler e a escrever na língua que ele fala

Oficialmente quase metade dos moçambicanos ainda é analfabeta, e nas zonas rurais o número é muito maior, particularmente entre as mulheres adultas e jovens. No Moçambique real, esses números poderão ser maiores pois a alfabetização em língua portuguesa tem tido resultados pouco positivos e há jovens que saem da 7ª classe sem ainda saberem ler nem escrever. “A melhor maneira para alfabetizar alguém, seja criança ou adulto, é ensina-los a ler e a escrever, ensinar as letras na língua que ele fala”, foi a solução encontrada por uma das fundadoras da Associação Progresso que trabalha nesta área há cerca de duas décadas.

Esqueça todas Organizações da Sociedade Civil (OSC) de que já ouviu falar, esta que lhe revelamos trabalha nas províncias mais desfavorecidas de Moçambique transformando em realidade o ditado de ensinar a pescar em vez de distribuir peixes: escrevem livros para a alfabetização de adultos e crianças em Shimakonde, Emakhuwa, Ciyao, Cinyanja e Kimwane e formam alfabetizadores desde 1991 em Cabo Delgado e no Niassa. Chama-se Associação Progresso e é provavelmente a primeira Organização da Sociedade Civil genuinamente moçambicana.

“A primeira coisa que nós fizemos foi uma escola em Matambalale, no distrito de Muidumbe, na província de Cabo Delgado. As populações disseram-nos que precisavam de escola. Nós dissemos que vamos apoiar com materiais, vocês têm de construí-la. Eles construíram, de pau-a-pique três salas de aula e até hoje está lá a escola primária” conta-nos quase emocionada Tinie Van Eys, uma cidadã holandesa que está em Moçambique desde 1980 e que trabalhou no sector da educação e é um dos membros fundadores da Associação.

Os outros membros da Associação Progresso são cidadãos moçambicanos com vasta experiência e trabalho realizado em instituições do Estado moçambicano, da educação à saúde e até uma jornalista. “A gente queria fazer aquilo que, às vezes, no Estado não conseguia fazer”, confidencia-nos Maria Teresa Veloso, outro membro fundador que trabalha na educação desde 1975.

O foco nas províncias mais a norte do nosso país é óbvio. “Optamos desde o início por trabalhar em Cabo Delgado e Niassa que eram as províncias mais carentes, e que talvez até hoje ainda sejam”, afirma Maria Teresa que se recorda de que, devido à sua experiência profissional – chegou a ser directora nacional de alfabetização – foi abordada em meados da década de noventa pelo então director provincial de educação de Cabo Delgado que precisava de harmonizar vários livros de alfabetização que estavam a ser feitos por organizações que trabalhavam com as populações locais. Porém, cada um desses livros estava escrito em função do tradutor que o preparara e apresentavam vários problemas linguísticos. “A Progresso organizou um seminário no início de 1996 com as pessoas envolvidas em cada língua para aprenderem a metodologia e escreverem os livros”.

Como se faz um livro para alfabetização

Ao contrário do que imaginamos, os livros para a alfabetização não são iguais, em conteúdo, aos livros das primeiras classes. De acordo com Maria Teresa, para fazê-lo numa língua local, primeiro escreve-se em português, com conteúdos adaptados à realidade da região onde vai ser usado. Depois organiza-se um seminário, na província onde será usada a publicação, envolvendo os tradutores dessa língua. Posteriormente ainda é preciso envolver linguistas para reverem a maneira como está feita a tradução e só depois é que é paginado e impresso.

Esta metodologia é necessária pois existem palavras que as línguas locais não têm, e escolher uma palavra ao acaso não é correcto. Maria Teresa cita um exemplo: “algarismo é diferente de número, mas as línguas não tinham palavra para dizer algarismo, usam número para ambos. Nós dizíamos o conceito de algarismo não é o mesmo que número, há dez algarismos e com eles se escrevem todos os números. Mas diziam não porque o algarismo também é um número fica a mesma palavra, e nós dizíamos não pode ser. Tivemos que rever e discutir muito com oz linguistas.”

Importantes na elaboração de livros de alfabetização em línguas locais são as imagens ou ilustrações que se usam, ou mesmo as situações descritas nos livros. De acordo com as fundadoras da Associação Progresso, devem ser usadas imagens, ilustrações e/ou situações que se refiram à realidade local para que os cidadãos que vão ser alfabetizados as reconheçam e entendam, primeiro porque as pessoas podem olhar para as imagens muito bonitas e não entender nada, e segundo para valorizar o conhecimento que as pessoas têm. “Aquilo que as pessoas conhecem até sabem muito, mas porque sabem isso na sua língua é completamente marginalizado quando todo o trabalho é feito na outra língua, a língua oficial”.

Como consequência natural do trabalho de edição de livros em línguas locais a Associação Progresso acabou por criar uma editora “editamos os livros da 1ª, 2ª até a 7ª classe, para o ensino bilingue (em Shimakonde, Emakhuwa, Ciyao, Cinyanja e Kimwane) para crianças da escola primária (em Cabo Delgado e Niassa)”.

Alfabetização em língua local

Desde a proclamação da independência nacional que a alfabetização em língua portuguesa é feita em Moçambique; contudo, após o sucesso inicial, verificou-se que nas zonas rurais havia um cada vez maior abandono por parte dos alunos. Segundo Maria Teresa Veloso, pensou-se, na altura, que esse absentismo, verificado antes mesmo de a guerra civil se intensificar, está relacionado com o facto de a alfabetização ser feita em língua portuguesa. “O factor linguístico é um factor muito importante porque à medida que se ia alfabetizando nas zonas rurais apareciam cada vez mais alunos dos cursos de alfabetização em português. Enquanto se estava nas cidades era outra coisa, mas quando se ia para as zonas rurais a realidade linguística era outra. E não falando português era muito difícil aprender numa língua que você também não entende.”

De acordo com os dados de 2008, do Inquérito do Indicadores Múltiplos, existiam ainda 48,1% de analfabetos no nosso país, nas zonas rurais o número de analfabetos subia para 65.5%, e a taxa de analfabetismo era bem maior entre as mulheres (64.2%) comparativamente com a dos homens (34,6%). A província de Cabo Delgado é aquela que tem o maior número de analfabetos, 66,6%, e no Niassa a cifra é de 61%.

Maria defende que a alfabetização deve ser feita na língua que as pessoas já usam na comunidade e argumenta “porque está a aprender duas coisas diferentes ao mesmo tempo, e a metodologia para aprender a ler é uma coisa e a metodologia para aprender outra língua é outra coisa. Todos estudos, de didáctica internacional sobre métodos de alfabetização, são métodos para ensinar a ler na língua que você já fala.”

As mulheres, a para das crianças, são o grupo-alvo do trabalho da Associação Progresso principalmente porque elas têm maior dificuldade de se manterem nos programas de alfabetização. As raparigas constituem família e têm filhos precocemente acabando por renunciar à escola. Anos depois, muitas vezes já abandonadas pelos homens que as impediram de estudar, sentem necessidade de aprender a ler e a escrever para a sua auto-suficiência.

As fundadoras da Associação Progresso contaram que num dos distritos onde trabalham um professor relatou-lhes que uma das alunas jovens que estava numa das turmas de alfabetização, aprendendo em Emakhuwa, havia sido aluna dele dez anos antes, na 1ª e 2ª classe, depois abandonou a escola.

Outro grande desafio que a alfabetização enfrenta é a falta de instrutores, principalmente com qualidade. “Os alfabetizadores são voluntários, recebem um pequeno subsídio, não são profissionais. São contratados por 10 meses, de Fevereiro a Novembro. O que é que acontece os melhores saem, arranjam outro emprego. Acabamos por ficar com os piores e quando o adulto vai a aula e vê que não está a aprender também desiste”, explica Maria Teresa que, apesar disso, não desanima e vê no horizonte ainda muito trabalho para a Associação.

Habilidades para a vida

Ao longo destas mais de duas décadas a Progresso editou 22 livros de literacia – que não se limitam a ensinar a ler, escrever ou a fazer contas, mas a usar o conhecimento da leitura e da escrita numa actividade específica do dia-a-dia -, e 84 livros de habilidades para a vida.

Os aspectos mais importantes da lei da família, da lei de terras, da lei das associações agro-pecuárias, da lei de florestas e fauna bravia e da lei da violência doméstica são alguns dos temas dos materiais produzidos nas línguas locais, com enfoque maior nos dramas reais vividos pelas mulheres moçambicanas e que após a sua leitura dão origem a debates.

Parte deste trabalho foi reconhecido este ano pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que atribuiu à Associação Progresso o prémio de alfabetização pelos “bons resultados pela construção de normas e pesquisas internacionais, treinando facilitadores e envolvendo a comunidade na concepção, monitoria e melhoramento da entrega”, refere um comunicado de imprensa da instituição.

As fundadoras da Progresso enfatizam que quem pede para aprender a sua própria língua é o povo, “as pessoas dizem eu quero aprender e a escrever na minha língua porque é a língua do coração. Porque quando é para discutir sobre violência doméstica você não discute numa língua que não é a doméstica, tem de ser na sua língua de casa”.

Neste trabalho de alfabetização a Associação Progresso editou também cartazes e folhetos sobre saúde preventiva e nutrição e ainda livros em braille em Ciyao, Cinyanja e Shimakonde que, em 2014, foram usados para ensinar a ler e aprender números a 24 mulheres e homens com problemas visuais.

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