Foi lançada quinta-feira, no Instituto Camões, em Maputo, a obra “Atlas Histórico de Moçambique”. Na véspera @ Verdade falou com o seu autor, o professor Telésfero Nhapulo que, pela primeira vez, contrariou a historiografia oficial ao incluir algumas figuras proscritas pelo partido no poder.
Como é que surgiu a ideia de escrever este Atlas Histórico de Moçambique?
Telésfero Nhapulo (TN) – Este Atlas Histórico nasceu da necessidade de apoiar os professores com um instrumento que sustentasse as suas aulas, porque um dos problemas que nós temos em Moçambique, em relação ao ensino da História, é a sua apresentação espacial. Muitas vezes fazemos um discurso e toda uma exposição mas não temos instrumentos que permitem a visualização dos acontecimentos que estamos a narrar. Foi dessa constatação que surgiu a ideia de produzir o Atlas Histórico, sendo uma forma de abordar o facto histórico no espaço e no tempo.
A que faixa etária se destina?
(TN) – Não foi concebido para uma faixa etária específica. O nosso ensino das ciências sociais começa na quinta classe e prolonga-se até à entrada na universidade. Este livro é útil para estes estudantes do ensino primário, secundário e mesmo para o ensino superior. Mas está mais vocacionado sobretudo para o secundário.
Que grandes dificuldades encontrou na elaboração deste atlas?
(TN) – O grande problema foi encontrar mapas para ilustrar os acontecimentos. Vou dar um exemplo: quando se fala do Estado de Gaza os limites desse Estado não são fáceis de determinar. Também as dimensões que temos de Moçambique hoje não são as mesmas de 1800 e mais para trás ainda pior. Quando falamos do império Monomotapa falamos naquilo que poderiam ser povoações que estariam sob influência do Monomotapa, sem saber com exactidão os seus limites geográficos. Este foi o meu grande dilema.
Qual foi a base de pesquisa?
(TN) – Foi o Arquivo Histórico, não tanto as fontes primárias mas as que circulam aqui no mercado. O que fiz foi recolher os diferentes mapas existentes nos diversos livros de história, compilando-os num único livro. Há, todavia, mapas que sofreram pequenas modificações, porque é difícil encontrar um mapa que apresente a delimitação de fronteiras desse Estado. Tem de se imaginar tendo em conta as zonas em que esse Estado detinha influência. Para sabermos que os ngunis chegaram a determinada região fazemo-nos valer das manifestações culturais características daquele povo e que ainda hoje, em certas regiões, persiste. Assim chegámos à conclusão que determinada região esteve sob influência dos ngunis. Mas a História é um processo dinâmico e não acaba com a produção do Atlas.
Qual é o tempo histórico abarcado pela obra?
(TN) – Começa com as primeiras fixações bantos em Moçambique até aos nossos dias, às primeiras eleições multipartidárias de 1994.
E porque não foi exactamente até hoje?
(TN) – Devido à escassez de páginas. A própria editora não queria uma obra extensa. Queria uma coisa com poucas páginas, de fácil consulta para os alunos.
Quantos livros consultou para a elaboração desta obra?
(TN) – Cerca de 20 livros.
O seu livro dá especial revelo à fundação do Estado do Zimbabwe. Este Estado teve assim tanta influência na formação de Moçambique?
(TN) – Nem tanto. O que tentei fazer foi trazer, de uma forma cronológica, toda a história de Moçambique. Como há muitos dados sobre o Estado do Zimbabwe e do império Monomotapa é mais fácil escrever sobre eles. Foi uma questão de abundância de fontes.
Ao longo dos tempos qual foi o Estado mais extenso em Moçambique?
(TN) – Sem dúvida que foi o Estado de Gaza.
Por aquilo que estudou consegue determinar o período mais violento da História de Moçambique?
(TN) – Talvez seja o período da intensificação da escravatura. Estou a falar do século XVIII até quase ao final do século XIX. Foi um período negro da História de Moçambique e da África em geral. Algumas comunidades desapareceram mesmo do mapa. Outro período violento é a implantação da administração colonial pós-Conferência de Berlim em 1885.
Neste atlas temos figuras que contrariam toda a historiografia oficial publicada depois da independência, nomeadamente dois dos chamados reaccionários que estiveram sempre apagados da nossa História. Recuperou-as sem receio?
(TN) – Acho que a História não é feita de bons e de maus. Quando falo do movimento de libertação estou a falar das diferentes pessoas envolvidas no processo. E essas pessoas, no seu conjunto, possuem inevitavelmente diferenças, como seja o caso da perspectiva de futuro da nação ou de ideais de construção da mesma. Contudo, todas elas tinham em comum o desejo de libertação deste país. Neste momento não estou em condições de dizer que os perdedores são realmente os perdedores e vice-versa. Tenho dificuldade em fazer esta avaliação. Mas até certo ponto fui modesto porque devia ter trazido mais figuras que estiveram envolvidas no processo de libertação deste país, mas tal ficou-se a dever à falta de imagens dessas figuras. Por exemplo, nas fontes a que eu tenho tido acesso há uma figura marcante na história de Moçambique no processo da luta de libertação que é o Adelino Guwambe, um dos principais fundadores da Frelimo.
Receou alguma pressão?
(TN) – Não, a História tem de ser feita desta forma. Não nos cabe a nós, historiadores, dizer se esta figura foi má ou boa. Devemos trazer a lume as acções desenvolvidas por essa figura e depois os leitores é que têm de fazer o seu juízo.
Vi também que se refere ao conflito pós-independência como guerra civil e não como guerra de desestabilização, expressão utilizada na historiografia oficial.
(TN) – Não querendo entrar em polémicas acho que se tratou de uma guerra civil. O conceito que aprendi de guerra civil é exactamente isso. Quando cidadãos da mesma pátria não se entendem e entram em conflito entre si formando forças beligerantes está-se perante uma guerra interna e a terminologia da especialidade usa o termo guerra civil. Grande parte dos livros que consultei chama-lhe guerra civil.
Porque é que então certos ciclos oficiais preferem o termo desestabilização?
(TN) – Chamo a isso história dos anais do poder. Construímos a História para legitimar o poder político. Mas como hoje vivemos numa sociedade democrática não faz sentido construirmos a história para uma época. Estamos proibidos, como professores de História e historiadores, de fazer uma história do poder político. Isso seria uma história falaciosa, bem longe de verdade, não ajudando em nada a construção de uma nação.