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‘@Verdade Solta: A cueca de estimação

Cinco minutos antes de me levantar da cama, os pensamentos acordaram e começou o meu constante dilema. Pus-me a reflectir: a pessoa nasce, cresce, passa o tempo todo a fazer coisas de que não gosta, tem filhos, eles casam-se e vão-se embora, envelhece e passa o dia a resolver ‘palavras cruzadas ou quebra-cabeças’, fica deprimido e morre. Ou pior: nasce, cresce, envelhece, vem a reforma, critica o estado das coisas, lembra-se de todas as frustrações por que passou e morre. Não sei porque me ocorreu pensar nisso, mas uma coisa é certa: não há razão para ser comedido.

“Puxa vida, quer saber? Daqui para diante serei eu mesmo”, disse mais animado do que ontem. Pus-me de pé e fui à casa de banho. Era o meu primeiro encontro directo com a água neste insurrecto Inverno sem fim à vista. Com o carvão a custar os olhos da cara, é luxo aquecer água para o banho, por isso é que sempre optei por lavar os pés, a cara e ir ao trabalho.

Energizado coloquei-me em cima da pedra e olhei para o lado: estava a minha vizinha sentada no seu habitual banco olhando fixamente para mim. Ela posiciona-se sempre ali quando estou a tomar banho. Na verdade, gosta de olhar para o meu tronco nu avantajado, fruto de ter frequentado regularmente aqueles ginásios improvisados na minha mocidade – aliás, devido aos meus enormes músculos, fui rotulado de Van Damme do bairro; as raparigas só não me apelidaram de Brad Pitt porque sou preto.

Se calhar a vizinha está carente, afinal, faz três anos que o seu marido faleceu e, desde então, nunca arranjou outro parceiro. Podia dar-lhe uma ‘mãozinha’ mas jurei fidelidade à minha esposa. Quem sabe, um dia desses possa dar uma ajudinha, valendo-me dos ensinamentos “Ajude o seu próximo” e “Dê de comer a quem tem fome e dê de beber a quem tem sede”.

Cantando uma música que soava a cânticos fúnebres, fui tirando a roupa para o delírio da vizinha. “Esta música é triste!”- comentei comigo mesmo. Preparei a garganta e comecei a cantar uma outra música gloriosa e espectacularmente num timbre de voz que se equiparava ao do grande tenor Caruso. Contagiada com a alegria, pois há 26 anos de casado nunca me vira tão feliz, a minha esposa, antes de ir ao mercado vender a couve e a alface, decidiu aquecer aquela xima e kacana da noite passada que, por alguma razão, sobrou para que eu comesse e fosse ao trabalho. Pendurei a minha roupa num dos paus que servem de sustentáculo da casa de banho. E a minha cueca de estimação coloquei num dos caniços que formam, por assim dizer, aquele espaço íntimo.

Entusiasmado, assistia à água a rebolar sobre o meu atlético corpo, descendo sobre a pedra e passando sobre um pequeno orifício que leva aquele líquido até à horta onde a minha adorada esposa produz a couve e a alface para a comercialização. Sentia-me extasiado com aquela cena que parecia um mistério de existência. A minha vizinha suspirava vezes sem conta e eu fazia charme esfregando o sabão no peito e nas axilas. Subitamente, a minha cueca de estimação, porventura a única, caiu naquele orifício, do lado de fora da casa de banho. Numa velocidade espantosa, a vizinha correu para apanhá-la e deu-ma usando a ponta dos pés numa vã tentativa de ver algo a mais do que já está habituada a apreciar gratuitamente. Agradeci-lhe e ela sorriu como quem dizia: “um dia irás pagar por isso”.

“Vou ao serviço sem cueca?”, questionei-me olhando para a mesma. Pressenti o mau augúrio pois não se trata de uma simples cueca, mas de uma peça íntima com um valor inestimável, que carrega muita história e pertencera ao meu bisavó. À beira da sua morte, o mesmo disse que a cueca deveria ser entregue ao seu primeiro bisneto – que levaria o seu nome, Shirangano – na véspera do seu casamento com a missão de quebrar o seu recorde de filhos, 45. Volvidos 26 anos, apenas tenho três, facto que está a criar convulsões na família e já foi agendada uma reunião intergeracional para o final deste mês onde se vai decidir se fico ou não com a cueca.

A mesma deve ter caído por causa do peso, faz três semanas que não sente o prazer de água e sabão. Normalmente, lavo-a aos sábados para no dia seguinte usá-la para ir à missa. Um misto de angústia e frustração invadiu o meu ser. “Não vou estragar o meu dia por causa de uma cueca molhada”, disse para mim mesmo. Arrumei-me, fui apanhar o chapa para o trabalho e cheguei sem sobressalto. Já deviam ser cinco e meia da tarde, esperava pelo transporte de volta a casa. A minha preocupação eram os contactos físicos dentro do chapa, sobretudo com o sexo oposto. Na rotineira tarefa diária e na frenética luta por um lugar no chapa, o alto astral evaporou-se. Mais um dia que se foi, igual ao anterior e, provavelmente, não muito diferente do de amanhã.

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