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Pandza: A Bala

Ela era bonita. Muito bonita. Uma autêntica bala, disparada acidentalmente de um dos prolíferos bairros da periferia. Uma bala perdida que fura sem piedade os corações de tudo e todos por onde passa.

Quando o velho chapa parou diante de mim foi como se me apontassem o cano tenebroso de uma arma. Estava abarrotado de gente como um carregador empaturrado de balas. A porta cedeu arranhando a fuselagem débil como se engatasse um bala na câmara.

Ela saltou do chapa desensardinhando-se daquela enchente como uma bala cede à pressão do gatilho. Quando a vi, ouvi pah! nos meus sentimentos. As pernas estremeceram-me mas não caí. Levei a mão ao peito, no lugar da dor. Não sangrava. Tinha apenas sido atingido por dentro, e estava sem colete à prova de amor.

Foi amor ao primeiro tiro, como se cupido, modernizado, já não usando arco e flecha, tivesse comprado uma kalashnikov no mercado informal, e a tivesse disparado certeiro para o meu coração.

Ela trocou palavras e moedas com o cobrador. Amarrotada pela enchente do chapa, ajeitou os trajes da moda que lhe aguentavam a flacidez das carnes. Mascando sem morder a chuínga, caminhando sem pisar o chão, ajeitou a calcinha tirando-a da reunião e fez-se ao destino.

O destino, cúmplice, já lhe tinha desenhado o trajecto na minha direcção. Esquivando os buracos do passeio e as poças de água passou rente a mim, tocando-me com o seu perfume.

– Olá! – atrevi-me.

– Olá. – respondeu-me, sem abrandar o passo.

– Posso conhecer? – investi. Fez-me um raio x, de baixo para cima e de cima para baixo, avaliando o produto, antes de me responder.

– Estou com pressa – quando pronunciou “pressa” o passo já não era tão apressado. Até a voz abrandou melosa. Percebi o convite.

– Chamo-me Antoninho.

– Prazer, Natércia – falava com a cabeça encostada ao ombro.

Dei por nós no mesmo passo lento que Adão cortejava Eva, aguardando a distração de Deus. Quando chegámos à sombra de uma acácia parámos, como se parássemos diante de uma árvore proibida. Apeteceu- -me dizer-lhe que queria fazer com ela aquilo que Adão fazia à Eva nos matagais de Éden, mas fui meigo com as palavras:

– Sabes, gostei de ti.

– Eu também gostei de ti, mas como amigo.

O olhar dela desmentia aquelas palavras. Falava baixinho o que eu interpretei como um convite para me aproximar. Ficámos ali dividindo silêncios, apenas olhando um no olho do outro, como Adão e Eva indecisos a provar coisas proibidas. Era a altura perfeita para um beijo. Fechei os olhos, e percebi o som suave e viscoso das pálpebras dela também fechando-se. Inclinei levemente o meu rosto e avancei em sua direção. Os seus lábios demoravam, pareciam não chegar nunca.

Avançava mas nunca chegava ao beijo. Estranhei e, ainda de lábio em riste, abri os olhos. Ela estava imóvel, assustada com a presença de um fulano que ao nosso lado empunhava um facão.

– Não te assustes, é o cupido – tranquilizei-a. Cupido andava por ali a mando de São Valentim, para preparar o dia dos namorados que se aproximava, decorando as montras de vermelho, fabricando apaixonados, e trocara arco e fl echa por aquela arma mais confortável, que lhe pudesse caber no bolso.

– Dá telefone! Dá telefone! – exigiu o cupido. Este era um cupido moderno, com jeito pouco romântico, devia estar stressado com o excesso de trabalho, pela proximidade do dia dos namorados. Ela ainda pensou que o anjo sem asas lhe quisesse roubar o celular, mas antes que eu lhe explicasse que ele apenas queria que ela me desse o número de telefone, ouviu-se: pah!, outro tiro.

Senti um vento veloz rasgar-nos as esperanças de sermos Romeu e Julieta um do outro quando a bala passou por nós. Atingido no peito, cupido não resistiu. No instante, o autor do disparate, o polícia disparador, com o cano da arma ainda fumegando, aproximou-se teatralmente. Natércia, assustada, deixou-me ali ferido de amor e desapareceu entre a multidão curiosa. Nunca mais a vi.

– Mataste o cupido – acusei-o.

No chão cupido agonizava em últimos suspiros, sem a imponência de figura lendária. No peito, a ferida da bala floreava de sangue e gangrenava, idêntica àquelas que fazia no peito de muitos amantes, cravando as suas setas, para lhes matar de amor. Fechou os olhos. Aquele anjo sem asas, funcionário público do amor, credenciado para enamorar as pessoas, agora era apenas matéria, sem alma, sem vida, deitado no chão frio ensanguentada.

Fui-me embroa. Entre a desolação de ter perdido um amor, e a tristeza de ver um anjo morto, uma dúvida misturou-se-me aos receios: E agora, com cupido assim morto, sem ninguém para processar o expediente do amor, quem dará despacho aos amantes? Seria uma boa oportunidade de emprego se São Valentim abrisse vagas para este cargo? E o que será deste mundo de guerras sem o amor, antídoto para o ódio entre as pessoas?

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