Ao longo do século XIX, a Grã-Bretanha esteve obcecada com o receio de que uma das outras potências europeias aproveitasse a decadência política que seguiu ao declínio da Ásia islâmica, ou o que hoje é por vezes referido como Ásia Central Ocidental.
O termo “o Grande Jogo” foi utilizado para descrever a rivalidade entre a Grã-Bretanha e a Rússia à medida que as suas esferas de influência na Ásia Central levaram as duas potências mundiais ao conflito. O Grande Jogo começou em 1830 e perdurou ao longo do século XIX. A própria frase foi tornada famosa por Rudyard Kipling em Kim, que a visualizou em termos de um rapaz anglo-indiano e o seu mentor afegão que enfrentavam as intrigas russas ao longo das estradas para a Índia.
Para os britânicos, de início questionaram as intenções de França. Depois foi a Rússia que se deslocou ao longo das rotas das caravanas da Rota da Seda e ameaçou estabelecer uma nova monarquia mundial sobre as ruínas das antigas rotas comerciais. Enquanto sucessivos governos britânicos estavam preocupados com o inexorável avanço do império russo na Ásia, no início do século, o foco de preocupação estratégica era Constantinopla (a Istambul dos tempos modernos). Mais tarde, quando os exércitos czaristas invadiram a Ásia Central, as atenções deslocaram-se para a Pérsia (Irão), para o Afeganistão e finalmente para as passagens montanhosas dos Himalaias que fazem fronteira com o atual Paquistão. No último quarto do século XIX, era um pressuposto comum na Europa que a próxima grande guerra – a guerra inevitável – seria um confronto entre os impérios britânico e russo.
Como se revelou, a “guerra para acabar com todas as guerras” ou “a Grande Guerra” não teve lugar na Ásia Central, mas sim na Europa e em todo o Império Otomano. Em tempos mais recentes foi o império americano que enfrentou o avanço do império soviético para o Afeganistão mas, em última análise, como temos testemunhado nas últimas semanas, os Estados Unidos retiraram-se do Afeganistão, levando ao fim de quase duzentos anos de intervenção externa na região.
Mas tal como o Grande Jogo parece estar a chegar ao fim na Ásia Central, parece que, em consonância com qualquer reality show de sucesso, estamos a assistir ao início de “O Grande Jogo – Edição de África”. Esta versão da franquia está, como o nome indica, a ser jogada em todo o continente africano entre a República Popular da China e os Estados Unidos da América.
A China tem sede em Djibuti na parte oriental do continente com acesso imediato ao Golfo de Aden, a sul do Mar Vermelho que, por sua vez, conduz ao importantíssimo Canal de Suez. Os Estados Unidos, que durante décadas se preocuparam com todas as coisas do Médio Oriente e da Venezuela e, no processo, desocuparam o lugar de primazia na liderança moral da ordem liberal ocidental, descobriram que a maior parte do continente sucumbiu à sedução do Yuan chinês. Isto colocou quantidades significativas de recursos naturais à disposição da China, juntamente com oportunidades comerciais significativas que recairão sobre as empresas chinesas de tecnologia e produção e os grandes bancos chineses financiarão as infraestruturas e o comércio que se seguirão ao desenvolvimento económico.
Contudo, antes que a O Grande Jogo – Edição de África possa começar a sério, os Estados Unidos precisam de declarar a sua base de origem e tudo indica que será o arquipélago das dez ilhas de Cabo Verde que tem feito tudo o que está ao seu alcance para mostrar que deve ser essa base.
Durante o último ano, Cabo Verde tem atraído muitas manchetes negativas. Primeiro, participou ativamente na prisão e detenção do diplomata venezuelano Alex Saab, segundo, desafiou o Tribunal de Justiça da CEDEAO ao não cumprir as decisões desse tribunal que exigiam a libertação incondicional de Alex Saab e, terceiro, recusou abertamente um pedido do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Genebra, que indicou que Alex Saab não deveria ser extraditado até ter tido a oportunidade de investigar cabalmente as alegações de tortura e negação de acesso a cuidados de saúde feitas por Alex Saab e pela sua equipa de defesa.
Para um pequeno Estado-nação que proclama ser um modelo de democracia para o continente africano, desafiar deliberadamente as convenções internacionais, desafiar as decisões vinculativas de um tribunal de direitos humanos respeitado e ignorar as instruções de um órgão prestigioso das Nações Unidas é sem precedentes. Só se pode concluir que devem existir algumas razões muito convincentes para que se comporte desta forma.
É aqui que entra a próxima edição de O Grande Jogo – Edição de África.
Em outubro de 2020, durante as audiências de confirmação no Senado, Victor Mercado, então nomeado Secretário Adjunto da Defesa para o Planeamento Estratégico e Capacidades, lançou um desafio a África. Afirmou: “Sabemos que a China está muito interessada em África. Não apenas na base que estabeleceram em Djibuti, mas sabemos que estão interessados no lado ocidental, como Cabo Verde, Nova Guiné Equatorial”.
Num artigo de fevereiro deste ano, a Nikkei Asia observou “o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, realizou quatro telefonemas para África desde que assumiu o cargo no mês passado. Primeiro ao seu homólogo sul-africano, seguido de uma conversa com o presidente da União Africana. O seu terceiro telefonema foi para a Etiópia.
Na terça-feira, falou com Rui Figueiredo, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa de Cabo Verde. A República de Cabo Verde, ou Cabo Verde, é uma pequena nação insular ao largo da costa ocidental de África, com uma população de cerca de 550 000 habitantes.
A decisão de telefonar ao arquipélago, à frente de outros 52 membros da União Africana, é uma forte mensagem da administração do Presidente Joe Biden de que está a levar a sério a “competição de grande poder” com a China”. (Sublinhado nosso)
Assim, parece que os Estados Unidos querem basear a sua participação em O Grande Jogo – Edição de África no arquipélago cabo-verdiano. O valor estratégico para os Estados Unidos é muito claro. Cabo Verde situa-se a 600 km ao largo da costa do Senegal e qualquer navio que saia do Mediterrâneo, ou da Europa, passa entre Cabo Verde e a África continental. É também importante notar que Cabo Verde é o ponto de África mais próximo da América do Sul. Juntando à mistura que os Estados Unidos anunciaram a 4 de julho, que pretendem “sujeito a negociações” investir uns improváveis 400 milhões USD (representando mais de 25% do PNB de Cabo Verde) na construção de um novo complexo de embaixadas, então talvez possamos ver exatamente o que tem tentado o Primeiro-Ministro Ulisses Correia a abandonar todos os princípios morais que o arquipélago afirma representar e aceitar as exigências dos Estados Unidos.
É importante, contudo, notar a advertência “sujeito a negociações” colocada sobre o mega-investimento proposto pelo Embaixador dos EUA, Jeff Diagle. Os comentadores locais são claros sobre o que isto significa. As únicas “negociações” que têm de ter lugar são sobre o pedido dos Estados Unidos de extradição do venezuelano Alex Saab para Miami. Saab foi detido a 12 de junho de 2020 quando o seu avião fez uma paragem de reabastecimento em Cabo Verde durante uma missão especial a caminho do Irão.
Muitas irregularidades surgiram durante o processo legal em curso em Cabo Verde há mais de um ano e o assunto chegou ao Tribunal Constitucional da nação. Entretanto, como já foi referido, o assunto foi considerado pelo Tribunal de Justiça da CEDEAO, pelas Nações Unidas e o estatuto da Saab como diplomata legalmente nomeado e o facto de que isto lhe conferir imunidade e inviolabilidade foi publicamente destacado pela Rússia, Irão e China. O Tribunal Constitucional deverá decidir sobre a dúzia de irregularidades e a extradição de Alex Saab nos próximos dias.
Não se enganem, O Grande Jogo – Edição de África está quase a chegar. O papel que Cabo Verde irá ou não a desempenhar, parece que se irá dever ao quanto está disposto a se curvar perante a pressão política lançada sob a forma de um pedido vergonhoso e ilegal. A implicação para Cabo Verde das palavras do Embaixador Diagle é clara. Nenhuma extradição significa nenhum dinheiro.