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A Ntyiso wa wansati – Mãos Cheias

Nada é permanente, senão a morte e a mudança, sempre te ouvi dizer, com os braços a abanar ao longo do corpo como dois ponteiros descoordenados e o sorriso vadio de quem comprou a liberdade com a própria existência. Desde que te conheço já mudaste pelo menos quatro vezes de casa.

Deve ter sido só há seis ou sete anos numa esplanada junto ao rio, numa daquelas tardes de Inverno em que o sol se lembra que nasceu português. Eu cheguei com o Twist pela trela e como tantas vezes acontece ele soltou-se e foi brincar com as pessoas que estavam a gozar o silêncio e o sol como eu. Sou muito tímida, se calhar é porque quando era pequena usava aparelho nos dentes e óculos e me sentia a rapariga mais desengraçada do colégio

Com os anos o amontoado branco da minha boca transformou-se numa muralha perfeita e ordeira e as hastes pesadas foram substituídas por lentes de contacto e hoje até dizem que sou uma rapariga bonita, mas o medo de desagradar nunca mais me deixou e deve ser por isso que aprendi a conquistar as pessoas com a doçura dos tímidos e a vulnerabilidade dos inseguros.

E deve ser também por isso que tenho um cão, ao menos existe alguém na minha vida para quem uma festa na cabeça representa a felicidade inteira de um dia e cujo sono me protege nas noites mais solitárias. O Twist conquistou-te imediatamente, tu achaste que a minha mesa era melhor do que a tua, por isso levantaste-te e passamos a tarde a trocar ideias e memórias e depois fostete embora e com os olhos muito abertos, como que a pedir desculpa disseste-me deixa-me partir, não tenho nada para te dar, mas já era tarde, eu já queria conhecer a tua casa e viajar nos teus livros, estender o corpo no teu sofá cama e ouvir os teus discos.

É sempre tarde quando se descobre o amor e sempre demasiado cedo para o poder viver, disse-te um dia quando trocaste o t-1 no Restelo com vista para o rio por um loft na baixa para estares mais perto da confusão. É melhor para quem não tem carro, explicaste fazendo uma festa na cabeça do Twist e eu senti que aquela festa era para mim mas não abanei o rabo porque percebi nesse momento que nunca ficarias em lugar nenhum, que nada nem ninguém te prenderiam, nem mesmo uma rapariga doce e um cão carente que só queriam fazer-te companhia nas tardes de sol e trocar livros e discos. Depois foste viver para Barcelona, desapareceste três anos e passei a viver cada dia para o momento em que tirava da caixa do correio postais ilustrados cheios de gatafunhos, o Twist abanava a cauda e lambia-me as mãos e eu lia-lhe as missivas vagas e exultantes de quem vive o desconhecido com a sede de um forasteiro perdido no deserto. Voltaste num Verão qualquer.

Tiveste muitas namoradas e apaixonaste-te por uma rapariga de cabelos muito compridos que nunca te ligou nenhuma e foi nessa altura que te deves ter sentido como o Twist quando chego mais tarde a casa e ele pensa que o mundo acabou porque já não vou voltar. Mas eu volto sempre para aqueles que amo e que dependem de mim, nasci com as mãos cheias ao contrário de ti que ias repetindo cada vez que me deixavas, não tenho nada para te dar.

Nunca te respondi que não fazia mal, que o amor que eu tinha chegava para os dois, que com o tempo eu acreditava que um dia seria a casa acolhedora das tuas mãos vazias. A semana passada foste para Paris e quem sabe quando voltas, se daqui a um mês ou um ano, por isso pedi-te para não me mandares postais nem me telefonares no regresso porque o Twist já aguenta ver-me a olhar para a caixa do correio, por isso comprei-te umas asas e já não te espero.

Se calhar sou eu que estou enganada e agora já é tarde para viver um amor com as mãos cheias. Quem parte há muito que se foi embora e tu nunca estiveste em lugar nenhum, por isso decidi guardar-te no coração que é o único sítio do qual tenho a certeza de que nunca sairás.

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