Outro dia cheguei a casa e lá tinha ele outra vez atirado a caça para cima da mesa da cozinha, como se ainda vivêssemos no tempo do D. Afonso IV, o fi lho da mãe que mandou cortar a cabeça à Inês de Castro. Três perdizes e duas lebres, tudo morto e por esfolar, e eu com cara de parva a olhar para aquilo sem saber o que fazer.
Sou boa caçadora, nunca tive medo de uma arma e sei que o gajo tem uma inveja surda e aguda da minha pontaria, mas daí a levar com a caça em cima da mesa da cozinha, vai um abismo que não quero saltar. Cheguei à sala, estava o parvalhão a limpar a arma, e disse-lhe:
– Mas que merda é aquela em cima da mesa da cozinha? E o cabrão, sem levantar os olhos, com o pano cor de laranja de fl anela na mão, a fazer festas no cano da espingarda como se fosse uma gaja, responde, sem se dignar a levantar os olhos:
– Se não sabes esfolar aquilo, aprende com a Rosa, que está em boa altura de saberes.
Eu já o tinha avisado duas vezes que não queria a merda da caça em cima da mesa, que a deixasse à porta de casa da Rosa, que é a caseira da quinta, e que ela se encarregasse de tratar daquilo, mas o gajo é burro, é burro e obtuso, porque pensa que pode mandar nas mulheres, que são todas criadas dele, que pode pôr e dispor sem lhes pagar nada e ainda por cima andar por aí a meter-se com as miúdas da vila, mas comigo vai de carrinho, porque eu não paciência para aturar machismos do tempo da primeira dinastia e por isso respondi-lhe:
– Ou tiras essa merda de cima da mesa da cozinha imediatamente, ou dou-te um murro na tromba que fi cas da cor do cano da espingarda. O gajo levantou os olhos, muito devagar, a desafi ar-me e disse, ainda mais devagar.
– Repete lá que disseste.
E eu repeti. Então o gajo encostou a arma ao sofá, levantou-se com um movimento cinéfi lo que me fez lembrar o Gaston do fi lme ‘A Bela e o Monstro’, chegou-se ao pé de mim e gritou:
– Repete lá o que disseste. E eu repeti, mas desta vez aos gritos. E o gajo, que é um cobardolas de merda, sentou-se outra vez e recomeçou a limpar a espingarda.
Foi então que me passei completamente dos carretos, fui à cozinha, peguei na merda da caça, atirei-lhe com os bichos mortos à tromba e lhe disse:
– Vou-me embora, que para aprenderes e não ser estúpido. Saí porta fora, meti-me no carro e vim-me embora com a roupa que tinha no corpo, sem olhar para trás. Pelo retrovisor ainda vi o jipe dele a perseguir-me na auto-estrada, mas passei-o na Via Verde, porque como o gajo era bruto nunca tinha tratado dos papéis.
Ainda o aturei várias noites a uivar como um cão à porta da minha casa de Lisboa durante mais três anos, até que agora, arranjou uma criadita qualquer que lhe deve esfolar a caça e me desamparou a loja.
Dizem-me que está velho e gasto, que perdeu aquele ar de cow-boy que me enfeitiçou quando era miúda e ainda não sabia distinguir os gajos maus dos muito maus. Mas agora só quero é que o gajo fique por lá com a Rosa, as criaditas, as perdizes e as lebres e nunca mais se lembre que eu existo, senão ainda pego na minha espingarda e lhe dou cabo do canastro que para o gajo aprender a não ser parvo.