Henning Mankell, o autor da série de romances policiais protagonizados pelo inspector Kurt Wallander, morreu esta segunda-feira em Gotemburgo, na Suécia. Desde 1987 que dividia a sua vida entre a Suécia e Moçambique, onde dirigia, em Maputo, a companhia Teatro Mutumbela Gogo.
Em Janeiro de 2014, Mankell escrevera uma crónica no jornal sueco Göteborgs-Posten a informar os seus muitos leitores – os livros da série Wallander estão traduzidos em todo o mundo, venderam já mais de 40 milhões de exemplares e inspiraram filmes e séries televisivas – de que lhe tinham sido diagnosticados um cancro no pulmão e outro no pescoço.
Nascido em Estocolmo em 1948, Mankell começou cedo a escrever teatro e ficção, mas só publicou o seu primeiro policial em 1991. Chamava-se O Assassino Sem Rosto (Mördare utan ansikte) e o seu herói, Kurt Wallander, era inspector na polícia de Ystad, uma pequena cidade sueca de 20 mil habitantes. Divorciado e pai de uma filha, Wallander tinha ainda uma relação algo difícil com o seu próprio pai, um homem que pintava obsessivamente a mesma paisagem, por vezes acrescentando-lhe um galo selvagem.
Se é de justiça atribuir o estatuto de pais do policial escandinavo a Per Wahlöö e Maj Sjöwall, o casal que escreveu nos anos 60 e 70 uma dezena de livros protagonizados pelo polícia Martin Beck, Henning Mankell foi talvez o principal responsável pelo reconhecimento internacional do chamado nordic noir, abrindo caminho a autores como o falecido Stieg Larsson, Camilla Läckberg ou Jo Nesbø.
Tal como Wahlöö e Sjöwall, marxistas assumidos, Mankell foi sempre um autor de esquerda, e se o introspectivo Wallander, um polícia que gosta de ópera e de whisky, não mostra ter inclinações políticas demasiado óbvias, não é talvez por acaso que os criminosos que enfrenta tendem a ser membros da elite financeira, ou mesmo fascistas declarados.
Envolvido nos protestos contra a guerra do Vietname, o apartheid sul-africano ou o colonialismo português nos anos 60, Henning Mankell nunca deixou de se envolver em causas políticas. Em Junho de 2010, foi um dos activistas detidos pelas forças israelitas quando tentavam levar ajuda humanitária à Faixa de Gaza. Autor de cerca de quarenta peças de teatro, a sua faceta de dramaturgo, que nunca abandonou, intensificou-se através do seu trabalho com a companhia Teatro Avenida, de Maputo, onde passava vários meses por ano desde meados dos anos 80. Num livro recentemente lançado em Portugal pela Presença, Um Anjo Impuro (Minnet av en Smutsig Ängel, 2011), Mankell conta a história real de Hanna Lundmark, uma sueca que no início do século XX embarcou para a Austrália como cozinheira num navio, mas que acabou por nunca lá chegar, tendo-se tornado proprietária do mais famoso bordel da então Lourenço Marques.
“Vim para África com o objectivo de ver o mundo sem ser através da perspectiva do egocentrismo europeu”, escreveu Mankell em 2011, num texto publicado pelo jornal New York Times. E acrescenta: “Podia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul, mas acabei em África porque os bilhetes de avião para lá eram mais baratos”.
Henning Mankell tinha um ano quando os pais se separaram. Ficou a viver com o pai, juiz, num apartamento por cima de um tribunal, o que lhe terá estimulado um interesse precoce pelo sistema de justiça sueco, tão dissecado nos romances de Wallander.
Aos 16 anos, abandonou os estudos e empregou-se na marinha mercante. Aos 20, estava em Paris a participar no Maio de 68, do qual guardava uma cicatriz de estimação, provocada pela bastonada de um polícia. Regressado à Suécia, trabalhou como ajudante de encenação, ao mesmo tempo que escrevia peças.
Ainda viveu na Noruega, com uma militante maoísta, antes de descobrir África, em 1972, quando tinha 24 anos. Visitou inicialmente a Guiné-Bissau e viveu depois algum tempo na Zâmbia, antes de se fixar em Moçambique e assumir a direcção do Teatro Avenida.
Wallander contará que foi num dos regressos de Moçambique à Suécia que, tendo sentido que o racismo e os ataques a imigrantes estavam a aumentar, se decidiu a tratar estes temas em livros policiais. Uma decisão não inteiramente surpreendente num país em que, muito graças à dupla Wahlöö/Sjöwall, o género tinha fortes conotações políticas de esquerda. E em 1986, cinco anos antes de Mankell criar Wallander, a Suécia tinha assistido ao homicídio, ainda hoje por solucionar, do primeiro-ministro socialista Olof Palme.
“Amigo dos moçambicanos e de Moçambique, fez do nosso país, a sua segunda pátria desde o limiar da década de 1980”, pode-se ler na mensagem de condolências do Ministério da Cultura e Turismo do nosso país que refere também a contribuição de Mankell “para o desenvolvimento nacional, intervindo de forma incondicional, na frente das artes e cultura, para a qual mobilizou apoios internacionais para o fortalecimento do sector e para as iniciativas associativas”.
Henning Mankell estava casado desde 1998 com a realizadora e directora teatral Eva Bergman, sua quarta mulher, e deixa um filho, o produtor Jon Mankell, envolvido nas adaptações televisivas suecas da obra do pai, mas também nos filmes realizados a partir da trilogia Millenium, de Stieg Larsson.
* Artigo editado a partir do jornal Público de Lisboa