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“Não há como acabar com os casamentos prematuros se não houver mudança de comportamento”, Francisca Sales

“Não há como acabar com os casamentos prematuros se não houver mudança de comportamento”

A gravidez precoce e a desistência escolar, em resultado do casamento precoce, são ainda problemas cada vez mais preocupantes em Moçambique, sobretudo nas zonas rurais, pois os seus efeitos têm sido perniciosos na saúde e no desenvolvimento das crianças, para além de bloquear as aspirações de centenas das raparigas. Para conter este mal, o Governo lançou, em 2014, a Campanha Nacional de Prevenção e Combate aos Casamentos Prematuros. Porém, volvido um ano, esta “política” ainda não está efectivamente transformada em acção com resultados tangíveis. Várias miúdas precocemente transformadas em esposas continuam com uma série de direitos privados e o seu futuro segue um rumo incerto.

Para as famílias de baixa renda, forçar uma criança a contrair matrimónio não só traz benefícios materiais imediatos, como também alivia a pobreza. A situação, que não só afecta negativamente as acções para a redução da penúria que assola milhares de moçambicanos, como também aumenta os riscos de mortalidade materna e infantil, é amplamente ignorada em inúmeras comunidades.

De uma extensa lista de meninas forçosamente transformadas em noivas, Maria Rondão, agora com 16 anos de idade, residente na localidade da Canguo, é apenas um exemplo das raparigas que abandonaram a escola para se casarem com um homem muito mais velho. Ela teve de ser mãe com apenas 14 anos de idade. Aliás, a adolescente, que sonhava em ser médica, disse que está “muito triste com a vida” que o seu pai traçou para ela. “Eu tinha o sonho de me formar e cuidar dos meus irmãos (…). Tenho vontade de estudar, mas não vejo com quem deixar o meu filho”.

Eis o dilema de uma das vítimas da Zambézia, onde Luísa Cristóvão, de 16 anos de idade, também vive um momento de calvário por ter sido largada à sua própria sorte e o filho de um ano e dois meses de vida pelo marido. Ela nunca foi à escola e, obedecendo a práticas tradicionais locais impostas pelos pais, casou-se precocemente aos 15 anos de idade com um homem muito mais velho.

Francisca Sales, directora nacional adjunta da Acção Social, disse ao @Verdade que as províncias do Niassa, de Cabo Delgado, de Nampula, da Zambézia, de Tete e de Manica são as que mais enfrentam este problema. Segundo ela, são poucos os pais e encarregados de educação que compreendem que quando uma rapariga é forçada a unir-se a um homem, principalmente mais velho, os seus sonhos de prosperar na vida ficam bloqueados. A escola fica para atrás porque no lar as vítimas se tornam submissas, cativas dos seus maridos e, regra geral, transformadas em “máquinas de fazer filhos” que, na pior das hipóteses, enfrentam as mesmas dificuldades pelas quais os progenitores passaram.

De acordo com o Inquérito Demográfico e de Saúde (IDS) de 2011, em Moçambique, os casamentos prematuros “afectam uma em duas raparigas” e 48% delas, entre 20-24 anos de idade, “casam-se antes dos 18 anos e 10%, entre 15-19 anos de idade, casa-se antes dos 15 anos”.

A nível mundial, o nosso país ocupa uma incómoda décima posição e, devido ao mesmo problema, debate-se com o aumento das infecções pelo VIH/SIDA e encontra-se ainda atrasado nos esforços de prevenção e combate contra este fenómeno, apresentando um nível de prevalência de casamentos prematuros acima dos restantes países da África Austral e Oriental, ficando apenas atrás do Malawi, enfatiza o UNICEF.

A Campanha Nacional de Prevenção e Combate aos Casamentos Prematuros, que envolve as instituições do Estado e organizações da sociedade civil, está em curso no país sob o lema “Casar? Só depois dos 18 anos” e visa sensibilizar a sociedade para que não submeta as crianças a casamentos prematuros, bem como garantir que as meninas que são sujeitas a tal prática tenham apoio. Sobre este último aspecto, Francisca Sales explicou, pese embora sem apresentar exemplos concretos, que o Executivo, através das estruturas locais, em particular dos líderes comunitários, tem salvo algumas raparigas.

“Quando as comunidades denunciam uma situação sobre uma rapariga que esteja para ser submetidas a um casamento agimos (…). Temos casos de meninas que elas próprias denunciaram o problema e o Governo interveio e impediu” a consumação da união forçada, disse a directora nacional adjunta da Acção Social, acrescentando, em relação às vítimas que se casaram precocemente há anos, que o Estado não tem meios para agir porque as miúdas já constituíram famílias.

Além da campanha acima referida, este ano iniciou a elaboração da Estratégia Nacional de Prevenção e Eliminação dos Casamentos Prematuros, outra iniciativa multissectorial. Mas por que motivos, afinal, as iniciativas com vista a erradicar os casamentos incidem mais sobre as raparigas e ignoram, literalmente, os rapazes, mormente os líderes comunitários, considerados os qua mais estimulam esta prática? Francisca Sales tem uma opinião diferente. De acordo com ela, “dá-se mais prioridades às meninas porque elas é que têm sido vítimas desta situação”. Contudo, “os rapazes são também abrangidos para que no futuro, quando forem adultos, não se casem com crianças”.

A nossa entrevista reconheceu que no campo há vários líderes comunitários que transformam as adolescentes em suas esposas e, evitando pôr o dedo na ferida, Francisca Sales defendeu que os casamentos prematuros são um problema resultante de uma mentalidade tacanha por parte dos pais e encarregados de educação. “Não há como” erradicar o mal “se não houver mudança de comportamento (…)”.

Relativamente a este aspecto, dados do UNICEF, sobre “Casamento Prematuro e Gravidez na Adolescência em Moçambique” indicam, apesar da implementação das iniciativas no sentido de estancar os matrimónios forçados, que “poucos progressos serão alcançados a menos que as normas culturais que fomentam e promovem os casamentos prematuros sejam mudadas”.

Na óptica daquele organismo, sendo o casamento uma instituição moldada pelas atitudes sociais, pode haver mudanças para que o mesmo ocorra mais tarde. Entretanto, todo o trabalho para o efeito deve incidir sobre as famílias de forma individual, pese embora todas as actividades desenvolvidas não sejam “susceptíveis de provocar alterações de atitudes e comportamentos ao nível mais amplo da comunidade. O trabalho com os líderes tradicionais, igrejas e mesquitas, assim como com as raparigas que se encontram no comando dos ritos de iniciação, é crucial para transmitir os benefícios de se retardar o casamento. Isto pode ser suplementado por meio de campanhas através dos mass media, incluindo as rádios comunitárias”.

Para Francisca, o que impera para que se alcance os tais almejados resultados é que em algumas comunidades “mudar a atitude de alguém de que nasceu, cresceu e até se casou ” recorrendo ao casamento prematuro para transformar as meninas em noivas tem sido uma tarefa árdua. Este tipo de pessoas resiste a quaisquer mensagens contra a situação. Por vezes,“esta resistência nem sempre é manifesta (…). Mas é preciso insistir no assunto”e direccionar mais as campanhas para as escolas no sentido de os petizes terem informação.

Ainda de acordo com o UNICEF, “as elevadas taxas de casamentos prematuros prevalecentes no país não podem continuar a passar sem uma vigorosa resposta do Governo, da sociedade civil e demais parceiros. E “as crianças de mães adolescentes estão também sujeitas a elevados riscos de subnutrição”.

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