Embora sob um ângulo imaginário, há quem ainda acredite que o reino dos céus é o mais justo, solidário e de eterno descanso, que a terra. A ser verdade – visto que ainda só se trata de suposições – julgamos que Zena Bacar, uma das incontornáveis vozes da música moçambicana há mais de meio século, só terá a sua recompensa nos céus. A razão é que, mesmo depois de ter entregue, quase, toda a sua vida à música, hoje a compositora e vocalista de Eyuphuro vive da misericórdia alheia. Ou seja, ao deus-dará.
Tivemos numa das edições de Janeiro de 2009, através da coluna “Bitonga Blues” do antigo jornalista do @Verdade, Alexandre Chaúque, a oportunidade de emitir um texto para o estimado leitor sobre a “desestruturação” da vida de Zena Bacar Ali, que em 1955 comprometeu-se com a música, um pacto que resultou em três álbuns.
Na altura, revoltado com a situação que hoje se agravou, o articulista escreveu o seguinte: “Não me perguntem porquê, mas ela faz-me lembrar a Bessie Smith. Também nascem feridas dolorosas dentro de mim quando penso nela, no facto de este país ter uma mulher que emana leite e mel e, mesmo assim, passar pelas ruas sem que ninguém lhe dê prioridade”.
Mas “eu, particularmente, não estou preocupado com tanta mediocridade que aparece por aí, mas revolto-me quando essa mediocridade é hasteada como bandeira de todos os moçambicanos, envergonhando-nos perante aqueles que sabem o que é boa música. Algumas meninas que andam por cá, já se arvoram divas. Mas divas de quê?! Moçambique tem divas, sim, e uma dessas divas é Zena Bacar, não é qualquer ‘menina bonita’ que veste saias curtas, maquilha-se e vai ao palco abanar o traseiro, como se isso fosse o bastante para se ser notável”.
Hoje, volvidos sete anos, o assunto “Zena Bacar na miséria (?)” continua a ser debatido em vários canais televisivos. Mas será que vale a pena torrar o tempo com a música em Moçambique? Que vantagens a música dá na Pérola do Índico?
Nascida no posto administrativo de Lumbo, na primeira capital moçambicana, em Nampula, Zena Bacar começou a sua relação com a música interpretando temas folclóricas e a dançar nos grupos maioritariamente compostos por homens da sua aldeia, com seis anos de idade, tendo posteriormente conquistado a fama com a qual levou o seu grupo Eyuphuro para a cidade de Lourenço Marques, actual Maputo.
“Conheci a banda Eyuphuro através do ex-director da Casa da Cultura de Nampula já falecido. Recordo-me de que os compositores nessa altura eram o Omar Issá, de Quelimane e Gimo Abdul Remane, e o director era o Salvador Maurício. Portanto, quando recebemos o convite de vir a Maputo, aceitamos a aposta e assinámos logo um contrato”.
Volvidos sensivelmente sete anos na capital do país, Maputo, a voz de Eyuphuro, a par dos membros do mesmo agrupamento, ficaram à mercê do bom senso do suposto produtor que, mais tarde, lhes largou. Isto é, em 1995. Segundo conta a artista, as razões da separação são várias, desde a falta de fundos para mantê-los, até de espaço para as actuações.
Para quem, por algumas razões, não a conheça, Bacar é uma mulher de poucas palavras. Fala muito pouco sobre si e sobre as dificuldades que enfrenta. É vocalista de um dos lendários grupos da praça, “Eyuphuro” que significa “Turbilhão”. A sua primeira música, intitulada Urera Krera, ou mesmo que “Vaidade sem Juízo” na língua de Camões, foi gravada em 1980.
Segundo conta, a cicatriz que lhe marcará eternamente foi contraída aquando da morte do seu único filho em plena lua-de-mel, na cidade dos lusitanos. “O meu filho morreu envenenado. Acabava de contrair matrimónio e foi passar a lua-de-mel em Portugal. Até hoje não se sabe quem teria feito esse acto macabro com o meu único filho”.
De todas as formas, a morte do seu unigénito debilitou a sua vida artística. E detalha: “a morte do meu filho influenciou-me bastante! Não só a carreira mas também a minha parte espiritual, porque ele não deixou sequer netos e, ainda por cima, era filho único. Cheguei até a padecer de perturbações mentais”.
“Ancorada” num destino inseguro e cheio de complicações, Zena nunca perde a esperança de um dia voltar a ser o que sempre foi, apesar da desvalorização a que hoje é sujeita. Na verdade, a artista transformou-se, nos últimos tempos, numa crente que só fica à espera da misericórdia de Deus ou mesmo de um enviado por Ele. Rezar e compor cânticos religiosos para a Igreja Universal tem sido a sua ocupação diária.
Actualmente com 66 anos de idade, dos quais 60 dedicados à música, Zena ganha a vida cantando em festas familiares. “Eu sei que já não tenho condições para idealizar coisas maiores e melhores, mas ainda continuo a cantar com o meu conjunto – Eyuphuro. Nesses biscates, às vezes, senão sempre, ganha, em cada um, 100 a 200 meticais”.
De referir que a mulher que levantou a bandeira nacional em diversos países, como Bélgica, Dinamarca, Suíça, Suécia, EUA, entre outros, agora vive na Avenida Guerra Popular em Maputo, num edifício que alberga pessoas com poucos recursos financeiros. Sabe-se também que algumas pessoas de boa-fé comprometeram-se a oferecer uma cesta básica e uma casa à diva. Na verdade, a ideia de doarem uma habitação a artista não é de agora. Segundo contou-nos, há anos um dos (nossos) dirigentes teria dado a ordem de se erguer um edifício para ela, o que, por motivos não claros e por ela desconhecidos, não se concretizou.
Embora moderada nas respostas, se calhar por medo de sofrer represálias, questionada sobre o que ainda lhe prende na música, respondeu categoricamente: “Não sei. Só Deus é que sabe. A música é o dom de Deus. Não posso deixar de cantar só porque algumas pessoas não me valorizam. Tenho que valorizar essa enxada que Deus me deu”.
E, cheia de argumentos, acrescenta: “na nossa sociedade há mulheres que são espancadas todos os dias pelos seus companheiros, mas, se por- ventura, perguntássemos a uma delas as repostas seriam tantas. Outras defenderiam o facto de terem filhos com o homem, e outras podiam também usar outros pretextos. Mas a verdade é que não se sabe. Só posso dizer que amamos. E quando se ama não se vê maldade”.
No entanto, antes de concluirmos, recorrendo, de novo, à crónica de Chaúque percebe-se que para o autor, e não só, “Zena Bacar é feita de outros cristais. Ela é fogo. Zena merece tratamento VIP. Falo dela hoje como já falei e tenho falado de outros colegas, que são simplesmente muito bons e que, enquadrados devidamente, orgulhariam o país inteiro”.
E, em conclusão, argumenta: “escutem a voz da Zena Bacar. Prestem atenção à movimentação dela no palco. Falem com ela de perto. Sintam a sua respiração. Ponham a vossa mão no peito da Zena e escutem o batimento do coração. Depois venham dizer-me quem é esta mulher. Não pretendo que lhe dêem esmola. Ela não precisa de esmola. Ela merece o lugar que conquistou com talento e transpiração. Mas ninguém liga a isso, em benefício de uma legião de jovens que nem deviam ser ouvidos. Temos um país com uma área musical desenvolvida ao avesso. Um país paradoxal, onde aqueles que não têm valor são os idolatrados e aqueles que têm realmente valor são humilhados”.