O objectivo era discutir a indústria extractiva em Moçambique, com base nas experiências acumuladas ao longo de mais de uma década por académicos, pela sociedade civil e pelo Governo, desde a chegada da Sasol e a olhar para a exploração do gás na bacia do Rovuma, como uma oportunidade de corrigir os problemas detectados, pois mesmo que mais receitas sejam arrecadadas para os cofres do Estado, isso não significa que a vida dos moçambicanos vai melhorar. “Nós não podemos eleger, num sistema democrático, um Parlamento e um Governo e depois termos medo de exercer a monitoria e o controlo (do que eles fazem), debater e tentar influenciar as políticas, por medo de ir preso. Lembrem-se de que não há prisão suficiente para o povo inteiro, alguns vão ficar de fora, esses que ficarem de fora vão ganhar. Nós não elegemos multinacionais”, enfatizou Carlos Nuno Castel Branco, durante a Conferência sobre os Desafios da Indústria Extractiva, que decorreu em Maputo.
A Autoridade Tributária de Moçambique (ATM), a única instituição do Governo que se fez presente durante os dois dias da Conferência, abriu o segundo dia de discussão sobre a indústria extractiva. “Acompanhamos com preocupação que os grandes projectos contribuem abaixo das expectativas dos cidadãos e um dos desafios que temos é garantir um nível cada vez maior de contribuição do sector mineiro e petrolífero”, reconheceu Gonçalves Mandava, do Gabinete de Comunicação e Imagem da ATM, que discorreu sobre como o pacote legislativo, criado em 2004, através da Lei de Minas e da Lei do Petróleo e Gás, que veio taxar os investimentos e a exploração dos recursos naturais.
Johannes Chiminya, da Organização Não Governamental ActionAid, abordou o problema dos capitais que saem de África ilicitamente. “Nos últimos 30 anos registou-se cerca de 1,4 trilião de dólares norte-americanos de evasão fiscal”. De acordo com a fonte Moçambique perdeu, entre 2002 e 2011, 2,33 biliões de dólares em capitais que saíram ilicitamente e em impostos o nosso país perdeu 187 milhões de dólares nesse período.
“Infelizmente, os parlamentares não quiseram entrar para a história ao aprovarem a Lei que tornaria públicos os contratos, deixaram a divulgação dos contratos ao poder discricionário do Governo”, referiu Adriano Nuvunga, do Centro de Integridade Pública (CIP), que explicou como as multinacionais Kenmare, que explora as areias pesadas em Nampula, a Sasol, que explora o gás natural em Inhambane, e a Anadarko, que pretende explorar o gás e o petróleo em Cabo Delgado, fazem a evasão fiscal através de “fórmulas corporativas”.
“O que nós constatámos é que a Kenmare mining, que faz a sua actividade e paga um imposto bastante reduzido porque ela vende a Kenmare processing, vendendo os minerais a preços artificialmente baixos e no processamento é onde gera os lucros (…) os dados sobre os volumes de produção, os preços de venda não são conhecidos”, afirmou Nuvunga.
Sobre o caso da Sasol, que até hoje não gera grandes receitas para o Estado, e como se de uma aula se tratasse, o académico traçou o historial deste que foi o primeiro grande projecto da indústria extractiva moçambicana e mostrou um estudo do CIP, de 2013, que apurou que “quem vende o gás que sai daqui para a África do Sul é a Sasol Petroleum Pande, quem compra é a Sasol Petroleum International na África do Sul, a empresa filha vende para a mãe. E não há problema nenhum nisso se houvesse transparência, que não existe”.
Relativamente à Anadarko, Adriano Nuvunga mostrou como os custos de exploração declarados pela multinacional norte-americana diferem em função do fórum em que são divulgados e chamou atenção sobre como isso poderá prejudicar as futuras receitas da bacia do Rovuma.
“Disparámos sem saber muito bem a quem nós devemos apontar os problemas”
Depois, Nuvunga voltou no painel seguinte, desta conferência que adoptou a denominação de Nkutano (significa reunião na língua macua), para discutir outras formas de usar os rendimentos que se esperam que sejam gerados pela exploração do gás em Cabo Delgado. “O que é que se pode fazer para assegurar que o gás não seja apenas para exportação, mas, também, de forma orientada para o desenvolvimento do país, por exemplo, o gás pode ser queimado e transformado em electricidade, pode ser transformado em gasóleo, para a produção de fertilizantes e para produzir metanol”.
“Estamos perante o discurso oficial que nos projecta para grandes expectativas de desenvolvimento industrial, agrícola, de infra-estruturas, etc, de recursos que vão dar biliões de dólares e por outro lado no meio rural as questões de sempre repetem-se. Repete-se o problema do conflito de terra, repetem-se as questões dos maus reassentamentos (…) os fenómenos ligados a estes grandes investimentos estão de alguma forma identificados e, à volta disso, vejo Organizações da Sociedade Civil que procuram fazer a sua advocacia, a sua pressão junto dos diversos níveis de governação de forma que certas coisas melhorem”, começou por afirmar o orador seguinte, João Mosca, do Observatório do Meio Rural, que alertou, “penso que estamos a correr o risco de nos repetirmos sobre os mesmos fenómenos e as vezes podemos esquecer o que está por detrás disso tudo. O que se passa é que a nível do território estão a operar-se grandes mudanças sobre os sistemas de produção, existe uma alteração do modo de vida das pessoas, existe uma dispersão das famílias inclusivamente, com fenómenos migratórios e esses aspectos nós não estamos a estudar”.
Mosca defendeu que deve ser abordado o modelo económico que está por detrás destas situações vividas pelo povo, “o modelo económico é da extracção de recursos, exploração da mão-de-obra, onde o Estado moçambicano dá terra barata ao investidor, os moçambicanos dão mão-de-obra barata, onde o Estado dá benefícios fiscais exacerbados”.
O representante do Observatório do Meio Rural destacou outro elemento importante, o Meio Ambiente, “o carvão é produzido a céu aberto, depois circula ao longo das nossas linhas férreas e estrada em vagões e camiões destapados e vai deixando pó de carvão de Tete à Beira e vão aparecer doenças respiratórias e outras”.
“Muitas vezes nós disparamos sem saber muito bem a quem nós devemos apontar os problemas, umas vezes apontamos às multinacionais porque fazem mal os reassentamentos mas quem decide o local do reassentamento é o Governo. As vezes nós responsabilizamos os Governos locais quando quem decide é o Governo Central, muitas vezes nós responsabilizamos à multinacional quando são os Governos locais que devem decidir, temos que saber muito bem quais são as responsabilidades dos diferentes actores económicos e sociais que operam à volta dos grandes investimentos”, concluiu João Mosca.
Vamos pôr o quê nos Fundos Soberanos
A Nkutano terminou com o professor Carlos Nuno Castel Branco a discutir a economia extractiva, “quando dizemos que a nossa economia é rica em recursos naturais é mentira, a nossa economia é rica em problemas sociais, como qualquer economia do mundo”.
“Se nós ficarmos dependentes das receitas de um pequeno leque de actividades primárias e altamente voláteis, a capacidade de estimular o desenvolvimento da economia também vai ficar volátil”, avisou Castel Branco que apresentou números que indicam que 75% da taxa de crescimento do PIB vem do sector extractivo e empresas que giram ao seu redor assim como 95% do investimento privado estrangeiro e nacional, 95% das exportações vem desta indústria que, em termos gerais, só emprega cerca de 40 mil pessoas.
O coordenador do grupo de investigação sobre economia e desenvolvimento do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), que em jeito de brincadeira disse esperar que a Procuradoria-Geral da República não adicione estas suas palavras ao processo-crime que corre contra si por alegados insultos à figura do antigo Presidente Guebuza, voltou a questionar a acumulação de riqueza por parte das oligarquias financeiras ligadas ao partido no poder, “quando nós olhamos para a estrutura de propriedade dos recursos minerais, das florestas, etc há muitos Nós lá, mas será que em Moçambique o Nós é homogéneo? Será que queremos todos as mesmas coisas? Quando Nós pomos os recursos naturais em grande velocidade à disposição das multinacionais sem nos preocuparmos em construir mecanismos de controlo, será que nós não sabemos disso?”
Castel Branco questionou também os Fundos Soberanos que são apontados como uma solução para as receitas esperadas da indústria extractiva, “mas vamos pôr o quê nesses Fundos Soberanos, vamos pôr dívida? Onde é que está o excedente socialmente disponível para pôr dentro do Fundo Soberano neste momento? Antes dizer que é uma boa ou má coisa é preciso pensar onde está o excedente? Sem isso o Fundo vai ser financiado por doadores, pela dívida pública?”
Infelizmente a maioria dos moçambicanos não pôde acompanhar os dois dias da Conferência, quiçá as centenas de membros da Sociedade Civil que estiveram presentes consigam transmitir fielmente as “aulas de sapiência” que foram dadas nestes dois dias da Nkutano, organizada pela Plataforma da Sociedade Civil para os Recursos Naturais e Indústria Extractiva.