Moçambique foi um dos países premiados, a 7 de Junho passado, pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) pela promoção de “um crescimento inclusivo e o desenvolvimento da agricultura, das pescas e das florestas”. Porém, no que à agricultura diz respeito, os camponeses é que deveriam ter recebido o prémio. Quem o diz é Vicente Adriano, da União Nacional dos Camponeses (UNAC), e argumenta: “logo após a guerra civil a produção do milho e da mandioca eram dos mais baixos, mas depois houve aumento das áreas cultiváveis (porque as populações regressaram ao campo) e foi nessas duas culturas que o país conseguiu alcançar a auto-suficiência e isso contribui para esse objectivo. Não aconteceu devido a uma intervenção consistente do Governo, de apoio à agricultura camponesa, porque o camponês foi sempre marginalizado.”
O objectivo assumido pelo Governo de Filipe Nyusi, no seu plano quinquenal, de alcançar a auto-suficiência alimentar até 2019 não deverá ser atingido, nem mesmo com o aumento da fatia do Orçamento de Estado que vai para o Ministério da Agricultura. “Quando analisamos a estratificação orçamentária vemos que apenas um terço desses recursos vão para a produção alimentar e os restantes vão para o fortalecimento institucional e depois para as culturas de rendimento”, explica o coordenador de advocacia, comunicação e cooperação na UNAC, Vicente Adriano, que chama a atenção dizendo que “é preciso ver que neste aumento há uma mistura entre a produção agrícola, a silvicultura (estamos a falar de plantações florestais), e estamos a falar de actividades de desenvolvimento rural. A questão que temos de colocar é esta: qual é o segmento do investimento que vai para a produção alimentar?”
Além disso, segundo Adriano, os últimos Governos do partido Frelimo em vez de apostarem nos camponeses, para a produção de comida, têm-nos marginalizado em detrimento do agro-negócio que tem experiências falhadas na produção de alimentos, como aconteceu na Argentina e no Brasil.
Os dois países investiram no agro-negócio da soja e do trigo, com resultados muito satisfatórios, mas continuam a debater-se com problemas de insegurança alimentar. “O grande problema é que se por um lado temos o impacto positivo do agro-negócio na balança comercial, por outro o impacto social é tremendo, porque você não investiu nas pessoas do seu país”, afirma Vicente Adriano que aponta como modelo a seguir a Tailândia.
“Os investimentos que foram feitos durante muitos anos a nível da agricultura foi por via de aposta no campesinato em que se permitiu que os camponeses tivessem acesso ao insumo, tivessem acesso ao crédito, tivessem acesso à comercialização. E por via disso permitiu-se que houvesse um incremento da produção agrícola mas também que houvesse um incremento da renda a partir deste pequeno camponês e, obviamente, a distribuição da riqueza foi diferenciada.”
Agro-negócio em curso que não está a gerar comida para os moçambicanos
O representante da UNAC explica que a o agro-negócio é diferente da agricultura comercial. “O facto de o camponês produzir cinco sacos de milho e depois comercializar dois não está a desenvolver agro-negócio. É preciso que se perceba que estamos a falar das grandes corporações internacionais, que controlam a cadeia de alimentos globais, e obviamente as experiências mostram que elas geram dependência no campesinato.”
E o nosso país tem experiências de agro-negócio em curso que não estão a gerar comida para os moçambicanos, pelo que “a produção de banana não é para alimentar o moçambicano, a produção da soja não é para alimentar o moçambicano, porque ela é exportada.”
Relativamente aos postos de trabalho que supostamente o agro-negócio cria Adriano rebate, afirmando que “um investimento que vai ser efectuado numa área de 10 mil hectares, onde estavam milhões de camponeses a trabalhar e no final empregam-se poucos. Se olharmos para as plantações florestais, como de eucalipto ou pinheiro, a situação é pior. Então cria-se uma mão-de-obra sazonal, nos primeiros tempos do investimento, que podem ser centenas de pessoas e, no terceiro ano, já não precisam de pessoas para trabalhar e no final o camponês perdeu a sua terra, não pode aproveitar as terras circunvizinhas porque passam a ser improdutivas, devido ao maior consumo de água pelas grandes plantações, e é obrigado a ir para terras marginais”.
Vicente Adriano que salienta que com este modelo futuramente vai aumentar o nível de desigualdades e a fome vai persistir em Moçambique. “Vai chegar uma altura em que o povo vai resistir e vai dizer basta, da mesma forma que vimos camponeses a queimarem plantações florestais de eucalipto e pinheiro no Niassa. O que estamos a dizer é que, sim, é possível encontrar modelos alternativos, sob o ponto de vista da extensão rural, sob o ponto de vista do provimento de insumos agrícolas, inclusive na perspectiva da criação de crédito rural.”
O coordenador de advocacia, comunicação e cooperação da União Nacional dos Camponeses afirma que os moçambicanos devem-se questionar “entre pedir emprestado dinheiro para construir a ponte para Catembe e pegar no mesmo dinheiro e construir algumas centenas de hospitais: o que é prioritário?”
Enquanto o povo não toma uma posição o Governo tem priorizado a ponte para a Catembe, o estádio nacional do Zimpeto, a EMATUM… e agora o ProSAVANA. “É inaceitável que o Presidente da República tenha que ir inaugurar o laboratório de solos em Nampula, numa altura em que há discussões consistentes e decisivas em relação ao programa ProSAVANA. É como se o Governo se estivesse a fazer de surdo”, lamenta Adriano que também alerta para outras decisões que estão a ser tomadas para facilitar a entrada do agro-negócio.
Sementes geneticamente modificadas
“Nos últimos anos assistimos ao desmantelamento da SEMOC (Sementes de Moçambique), que era o principal braço de assistência em insumos, particularmente em sementes, que é inexistente hoje a nível do país. E o pior de tudo isso é que em 2013 houve uma transformação da legislação nacional de sementes, e isso está dentro de um processo maior a nível regional de harmonização de sementes, e uma das coisas que está preconizada é o subsídio a sementes da agricultura camponesa. O objectivo central é que seja o sector privado o responsável pela produção e distribuição das sementes, a nível do território nacional.”
Uma outra faceta da revisão do Regulamento de Sementes é que este abre espaço para a entrada de Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Em Moçambique já existem, inclusive, ensaios a decorrerem no Chókwè, o que é preocupante para os camponeses, segundo Vicente Adriano. “Liberar os OGM´s significa destruir todo um património nacional de sementes. Significa que não haverá co-existência entre os OGM´s e todo o património de sementes locais. Vou-lhe dar um exemplo, para culturas que são de polinização aberta como o milho, se é plantado um OGM e tem uma semente local e obviamente há um cruzamento.”
E há mais, “uma das características centrais dos híbridos é que tem de se colocar onde há sistemas de irrigação, porque a quantidade de água necessária é outra. Então não podes pegar numa semente híbrida e colocar numa plantação a sequeiro, ela precisa de uma quantidade significativa de água”
O representante da União Nacional dos Camponeses alerta também que com o uso deste tipo de sementes os camponeses deixam de poder aproveitar algumas das sementes, após a colheita, e são obrigados a comprar novas sementes todos os anos.
De acordo com o nosso entrevistado, a revisão da legislação das sementes no nosso país está relacionada com a adesão de Moçambique, em 2013, a um projecto denominado Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional em África, vindo do grupo dos oito países com economias consideradas mais desenvolvidas do mundo (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido e Rússia), que se propõem tirar da pobreza 3,1 milhões de moçambicanos até 2022.
Vicente Adriano desmistifica este projecto, esclarecendo que ele “resulta de um pacto entre os G8 com grandes corporações internacionais que têm interesses claros, quer no sector de sementes, quer no sector dos fertilizantes e traz consigo um pacote que preconiza: a mudança do quadro legal (por isso foi alterado o regulamento de fertilizantes no ano passado, para adequar as demandas destas grandes corporações), preconiza a mudança da legislação fundiária (no caso de Moçambique significa a flexibilização do período de atribuição de DUATs).”
Ironicamente, a Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional vai ser implementada por algumas agências multilaterais com projectos passados com resultados duvidosos para os camponeses, como são os casos do Banco Mundial ou da Agência Norte-americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
“A lógica da USAID é simples: acredita num processo de integração vertical do campesinato com o agro-negócio e obviamente o grande enfoque que é existe é a promoção do agro-negócio como alternativa para a segurança alimentar, o que é um pensamento falacioso”, constata o representante da União Nacional dos Camponeses que lamenta o facto de que o “Governo moçambicano acabou por comprar esse argumento de que, por via de grandes investimentos no sector agrário, resolvemos o problema da fome e resolvemos o problema de emprego”.