É, particularmente, um caso de mísera convivência, de encontro com uma realidade desconfortável, descortinar algum préstimo no livro “O Curandeiro Contratado Pelo Meu Edil”, lançado na última terça-feira (16), na cidade da Beira, do escritor moçambicano Dany Wambire. Os “Cronicontos”, como os chama o autor, são de molde a criar “raiva” nos leitores. É que no tal Fim-de-Mundo – que não difere do nosso –, o cancro da corrupção generalizada não é só “venerada” pela Polícia, de forma geral pelos políticos, mas também pelos pastores.
Deixe-se, estimado leitor, viajar connosco, só de passagem, para a cidade do diabo, quer dizer, a cidade do Fim-de-Mundo. Na verdade, estamos num lugar incerto, algures em Moçambique, onde a vida é uma faca de dois gumes, enfiada e apontada para o filho do Homem. Tal como na terra, aqui vive-se e morre-se. Vítima de curandeiros mafiosos, os ditos “nyangas empreendedores”; de relações extraconjugais; de feitiçaria; e de mendicidade, o tal “defeito que sustenta”…
Como outrora, a cidade está ainda infectada de falcatruas dos potentes. Em Fim-de-Mundo todos já eram corruptos ou corruptores. “Sim, todos já eram dedicados ao dinheiro ilícito, pedindo recompensa, por todo o serviço, a todo o cidadão”. Metade dos nativos está livre, mas nesta cidadela na orla do Oceano Índigo os detentores de poderes (seja lá qual for) ainda ocupam a sua derradeira posição na sociedade tida como democrática.
Inconstante Inconstâncio, por exemplo, “trabalha para a Polícia de Tráfego de Fim-de-Mundo. Os seus deveres eram: controlar os veículos que caminhassem em excesso de velocidade e em velocidade excessiva, policiar os condutores, que movem os veículos, em estado de embriaguez, entre outras ilicitudes rodoviárias. Mas, não escassas vezes, exigia outras coisas imprevistas por lei, quando, a todo o custo, queria arrancar trocados dos automobilistas” (pág. 9). Por ele não se passava sem que se tenha capacete, luvas de condução, entre outras desnecessidades.
Este cenário retratado na recentemente lançada obra de Wambire transcende a simplicidade que um narrador tem para contar a sua vida. É uma história sobre a fúria assustadora de uma sociedade, independente há 40 anos, vista de perspectivas diferentes, e contada de diversas maneiras, em episódios e subtítulos muito curtos que alternam pontos de observação e que por vezes nos levam a várias abordagens.
Os jovens Inconstante Constâncio, Gerónimo Comichão, Violetim Doméstico, Injustino Mafilhoso, Albertino Paupérrimo, Eugusto Fambane, Paulo Pimenta, Azarias, Dalila, entre outros, são os protagonistas que vão fazer diversos papéis para retratar aspectos da corrupção, e os “rígidos métodos” das leis com as humilhações diárias a que os cidadãos são impostos; da prostituição, o ombro mais quente para consolar a uma mulher desesperada; da feitiçaria, a doença dos pobres….
“Parece-me que custa ser dirigente numa autarquia como a nossa, a de Fim-de-Mundo. Pois, para além de teres de satisfazer os interesses dos munícipes, deves recompensar, com coisas imediatas, os teus partidários. E, caso não o faças, será que conspiram contra ti mesmo, até te demitirem? Sei lá, respondam os que conhecem disciplinas e indisciplinas partidárias”.
Neste título, “O Sepultador do Moderno” encontra-se um “Croniconto” que versa sobre os males da actualidade. Ou seja, retrata os dilemas vividos diariamente nos medias moçambicanos, em particular na televisão: “ele gostava, sim, de informação e de poupança de distância, mas as televisões modernas traziam menos informação”.
Trata-se, na verdade, de uma realidade que muitos justificam como factor principal da modernidade. Que é, até certo ponto, globalização imposta, traiçoeira, desalmada… “Traziam mais culturas virulentas, de outros povos. E nós imitamos tudo, não raras vezes, sem sucesso. Fim-de-Mundo estava a destruir-se, à conta desses televisores” (pág. 44).
Contudo, o retrato do drama da prostituição e a suposta escapatória diante do previsível destino na terra encontram-se em vários textos e outros subsequentes. À guisa de exemplo, no texto da página 32, “As Frutas Mortas”, o autor faz o “mapeamento” de uma dona de casa que se prostitui por ganância, sei lá. É uma história sobre a beleza – esse instrumento subtil que quando mal usado desaparece fibra por fibra.
“Diz-se que a mãe de Generosa Sentimento, a Dona Derrota Mávida era de reconhecível mérito pela sua respectiva profissão, a prostituição. Reza a história: a mais antiga profissão da humanidade”.
Porém, “sabe-se que nenhum homem aguentava com os encantos da Dona, ou melhor, da meretriz Derrota. Na verdade, ela era esguia mais que o eucalipto, era cheirosa mais que roseira, ancas a arredondarem-se amiúde e nádegas bem calcadas pelas cabeceiras das calças justas de que ela dispunha. Enfim, era bonita e partilhável, como melancia grande”.
Em suma, o segundo livro de Dany Wambire resume-se de forma muito simples. Cruzando imaginação com uma escrita intimista, a de alguém que acede aos cantos mais sombrios da mente, o escritor conseguiu unir o útil ao agradável.
De “Nunca mais, corrupção” a “Aquele é teu empregado” Wambire deixou, em 28 “Cronicontos”, um triste retrato da condição humana de ingénuos, prostitutas, pedintes, falsos profetas, feiticeiros, curandeiros… que até acudimos e protegemos neste Fim-de-Mundo.