Dezenas de mulheres associadas dedicam-se a diversas actividades de geração de rendimento, contribuindo, deste modo, para o orçamento doméstico das suas respectivas famílias no coração de Moma, na província de Nampula. Através de processamento de pescado, elas conquistaram a independência financeira, porém, primeiro, as donas de casa tiveram de vencer a batalha contra a resistência preconceituosa dos maridos numa comunidade onde a mulher é a maior força de trabalho.
Aos 32 anos de idade, Latiza Domingos Amade considera-se uma mulher de sorte. Afinal de contas, apesar dos preconceitos que cercam as mulheres no trabalho fora do lar na vila de Moma, ela é hoje financeiramente independente do seu companheiro. “Já não há humilhação em casa”, diz e acrescenta: “Por mais que o homem se ausente de casa por mais de um mês, hoje nós as mulheres temos como sustentar os nossos filhos”. Mãe e vivendo maritalmente há aproximadamente 10 anos, ao contrário de outras milhares de senhoras naquele distrito, ela já não deixa para o seu amigo a responsabilidade do sustento da casa. Presentemente, orgulha-se da sua nova condição económica e rejeita com veemência a ideia de submissão da mulher.
Latiza Amade é presidente do conselho de direcção da Associação Graças a Deus, uma agremiação constituída exclusivamente por mulheres processadoras do pescado em Moma que pertenciam a um grupo misto que pratica a actividade designada Poupança e Crédito Rotativo, conhecida por PCR. A associação surgiu em 2007, quando as senhoras começaram a sentir-se excluídas pelos homens das tarefas de geração de rendimento. “Nós praticamente não fazíamos quase nada, todas as actividades eram da responsabilidade dos homens.
A nós cabia-nos apenas guardar o dinheiro”, explica. A exclusão por que passavam deixava um total de 12 mulheres numa situação de desconforto e desânimo. “Sentíamo-nos improdutivas, tínhamos vontade de dar a nossa contribuição, mas não nos davam essa oportunidade. Foi aí que pensámos em desistir da PCR e criar a nossa associação”, conta.
Com um investimento inicial de cinco mil meticais, o grupo de senhoras colocou em marcha o negócio de processamento e comercialização de pescado. Hoje a Associação Graças a Deus é um símbolo de emancipação económica em Moma. Por mês, em média, o grupo de mulheres processa e vende 500 quilogramas de pescado, chegando a facturar 50 mil meticais. O produto é adquirido dos pescadores independentes ao preço que varia entre 75 e 80 meticais por quilograma e comercializado por 100 a 150 o quilo. Os compradores não são somente os residentes da vila, grande parte é oriunda da cidade de Nampula e dos distritos circunvizinhos.
O crescimento da actividade económica começa a abrir um novo horizonte para as mulheres que já falam na expansão do projecto. Neste momento, as associadas pensam em galvanizar o negócio que, numa primeira fase, contou com o financiamento de 40 mil meticais e arcas frigoríficas dado pela Associação Nacional de Extensão Rural (AENA). “Estamos a pensar em ter os nossos próprios pescadores, um espaço maior e um barco a motor para a pesca”, afirma Latiza.
Os lucros são repartidos anualmente entre os membros. Graças a essa actividade de geração de rendimento, as integrantes da Associação Graças a Deus sentem-se economicamente independentes e capazes de sustentar a família sem a ajuda dos respectivos maridos. Latiza Amade garante que muita coisa mudou na vida de cada membro. “Todas nós dependíamos dos nossos maridos, mesmo para levar as crianças ao hospital, mas hoje isso já não acontece. Pessoalmente, conquistei muita coisa para o bem-estar da minha família e acredito que, com o tempo, vou conquistar mais ”, afirma e acrescenta que o negócio permitiu melhorar a sua habitação, adquirir camas e colchões, e prosseguir com os estudos. A história da Associação Graças a Deus não é única em Moma. Existem seis associações de mulheres que se dedicam a actividades de geração de rendimento naquele ponto do país.
A Associação de Mulheres Processadoras do Pescado Migurine “A” é outro exemplo de sucesso. Fátima Mussa, secretária da agremiação, fala sobre o seu crescimento e da mudança da situação económica dos membros. A associação criada em 2007 por 16 mulheres é presentemente motivo de orgulho, até porque a mesma surgiu do nada. “Começámos por vender peixe seco e cortar lenha e, mais tarde, em 2011, tivemos o financiamento da AENA, facto que nos permitiu desenvolver a nossa actividade”, explica Fátima Mussa. No princípio, a associação de Migurine “A” não dispunha de meios para conservar o pescado. O produto adquirido de seis pescadores era conservado nos congeladores particulares dos membros da agremiação. Actualmente, além de um coleman, elas contam com duas arcas enormes, uma das quais obtidas recentemente devido ao aumento do volume de negócio.
Em média, por mês, a associação compra 700 quilogramas de pescado e chega a amealhar no mínimo 60 mil meticais de lucro. Mas nem tudo é um mar de rosas para esse grupo de mulheres. Recentemente, devido ao corte sistemático da corrente eléctrica, perderam, pelo menos, 200 quilos de peixe. “Foi um grande prejuízo para nós, mas não desanimámos, pelo contrário, empenhámo-nos ainda mais”, conta Fátima que acrescenta que as associadas já estão a pensar em adquirir um painel solar de modo a evitar que situações dessa natureza se repitam.
Fátima Mussa garante que o negócio vai de vento em popa e há necessidade de melhorar o espaço de processamento e comercialização do pescado. Porém, a falta de uma instituição bancária e um Número Único de Identificação Tributária (NUIT) são apontados pela associação como alguns dos principais constrangimentos no desenvolvimento da actividade. “Os nossos potenciais clientes eram alguns restaurantes da cidade de Nampula, mas eles não adquirem o produto connosco porque não passamos justificativos de compra, uma vez que não possuímos NUIT”, afirma.
A actividade de processamento do pescado deixou de ser apenas um meio de sobrevivência, passando a ser um mecanismo de independência financeira para um grupo de mulheres em Moma. Os dividendos são repartidos anualmente. Com o dinheiro, Fátima, à semelhança de outros membros da associação, passou a contribuir de forma significativa no orçamento doméstico. Casada e mãe de quatro filhos, hoje ela é praticamente responsável por grande parte das despesas da sua família. “Graças ao trabalho, os meus filhos estão na escola, melhorei a nossa casa, adquiri camas e colchões e televisão por satélite. Neste momento, o meu desafio é cobrir a casa com chapas de zinco”, diz.
“Primeiro, tivemos de vencer a resistência dos nossos maridos” Nos primeiros dias, os efeitos da estabilidade económica das mulheres geraram uma certa desestabilização emocional nos seus lares, apesar de Moma ser um distrito onde, por razões culturais, as mulheres são as principais responsáveis na garantia do sustento diário da família. Quando começaram com a actividade de processamento do pescado, Latiza Amade e Fátima Mussa encontraram uma forte resistência por parte dos respectivos maridos que não aceitavam que as suas esposas estivessem envolvidas em associações e em actividades de geração de rendimento.
“Quando comecei a ganhar o meu próprio dinheiro, automaticamente o ambiente lá em casa começou a mudar, pois deixei de pedir dinheiro a ele para resolver alguns problemas pontuais. O meu marido já não se sentia confortável com a situação”, conta Latiza. O companheiro exigiu que ela abandonasse a actividade, alegando que a mulher não devia trabalhar fora de casa. Porém, com o andar do tempo foi aceitando a nova realidade. “Hoje ele já se sente à vontade, até porque não se sente sufocado com as despesas”, afirma.
Fátima Mussa passou também por situação idêntica. O seu esposo sentia que o seu papel de chefe da família estava a ser ameaçado e, algumas vezes, chegou a impor que a sua esposa abandonasse a associação para cuidar exclusivamente das tarefas de casa. “No princípio, ele sentia-se incomodado com a minha independência financeira, mas hoje é o primeiro a apoiar-me”, diz.
A técnica da AENA, Isabel, que trabalha em Moma com as associações de mulheres desde 2011, afirma que a situação mudou graças a um trabalho de sensibilização. Foi necessário convocar os maridos das integrantes e explicar a importância das actividades de geração de rendimento no orçamento da família. “Elas agora são líderes, fazem o seu próprio negócio, aprendem a fazer poupança e contribuem, de alguma maneira, para o desenvolvimento da economia local”, diz a extensionista.
Os casos de Latiza e Fátima são uma excepção, e não a regra. No início a Associação Graças a Deus era composta por 12 mulheres com idades compreendidas entre 32 e 45 anos, porém, presentemente conta com nove membros. Já a Associação de Mulheres Processadoras do Pescado de Migurine “A” era constituída por 16 pessoas, dos 35 a 53 anos de idade, contando actualmente com oito. No entanto, três razões concorreram para a desistência desse grupo de mulheres.
A primeira é relativa à divisão de lucros, pois algumas exigiam que o mesmo acontecesse no final de cada mês. A segunda razão tem a ver com o medo de não conseguirem pagar o financiamento. A última é referente à imposição colocada pelos respectivos maridos e, para salvaguardar o casamento, grande parte das mulheres acabou por ceder à pressão.
O que os homens têm a dizer
É indisfarçável a existência do preconceito em relação à mulher nas actividades de geração de rendimento por parte dos esposos em Moma. A força dessa cisma manifesta-se não só na atitude do homem, mas também no dia- -a-dia. Momade Anifo, de 43 anos de idade, afirma que não tem nada contra o facto de a mulher ganhar o seu próprio dinheiro, porém, é da opinião de que isso não deve deixá-la altiva ao ponto de ignorar as suas responsabilidades como dona de casa. “Não me sinto ameaçado vendo ela a conquistar a sua independência financeira”, afirma.
Gilberto Máquina tem uma opinião diferente. Este afirma que, para existir harmonia no lar, a responsabilidade pelo sustento da casa tem de ser inteiramente do homem. “Não se trata de um mecanismo para tornar a mulher dependente do homem, mas de um assunto da alçada masculina”, argumenta e acrescenta que “a mulher é diferente do homem, ela por natureza está preparada para cuidar das tarefas da casa e dos filhos”.
“Hoje temos mercado para o nosso peixe”
Quando em 2011, Amide Raimundo, de 32 anos de idade, abraçou a actividade pesqueira, o grande constrangimento era encontrar mercado para o pescado. Além de ficar hora a fios no alto-mar, tinha de percorrer as artérias da vila de Moma, perscrutando potenciais clientes de casa em casa, uma tarefa que ele definiu como “bastante dolorosa”.
“O nosso trabalho era dobrado. Não bastava pescar, tínhamos de procurar compradores para o nosso produtos”, conta. A situação era difícil, pois nem sempre Raimundo conseguia vender o pescado no mesmo dia. Quando isso acontecia, como forma de evitar a deterioração do peixe, era obrigado a submetê-lo ao processo de secagem e fumagem.
Porém, desde 2007, com o surgimento do projecto das associações de mulheres processadoras do pescado, o que já era uma situação complicada começou a ganhar uma nova dinâmica. Para o pescador, o grupo de senhoras que se dedica à compra e revenda de peixe foi a bóia de salvação, uma vez que já não tem que se preocupar com a comercialização do produto. “Hoje temos mercado, graças a essas senhoras”, diz e acrescenta que “presentemente, a nossa preocupação circunscreve- se ao mau tempo no mar”.
Na verdade, a actividade pesqueira em Moma recebeu um incentivo. Até ao ano de 2006, o rendimento mensal de Amide Raimundo e outros pescadores não ultrapassava os 10 mil meticais. Presentemente, amealha essa quantia por dia. Diga-se de passagem que, graças ao trabalho das mulheres processadoras do pescado, adquiriu dois barcos a motor e empregou três jovens pescadores. Cada um deles ganha um baldinho cheio de pescado – o equivalente a 600 meticais – que consegue capturar diariamente.
“Às vezes, quando apanhamos bons peixes, conseguimos mil a 1200 meticais”, afirma Saíde, um dos jovens pescadores. Porém, há dias em que a situação se torna difícil tanto para os pescadores como para as mulheres processadoras do pescado. “Há vezes em que invisto muito dinheiro em combustível e regressamos do mar sem nenhum pescado. Essa é uma situação complicada para todos nós, mas a culpa não é nossa, é do mar”, diz Amide Raimundo.