É director da revista Proler – que tem como vocação incentivar o gosto pela leitura – e no seu percurso conta-se uma passagem pelo jornal Notícias, onde concebeu e dirigiu uma página chamada Xipalapala. Publicou os seguintes livros: As Vozes que Falam de Verdade (1987), A Balada dos Deuses (1991), Fazedores da Alma (1999, em co-autoria com Jorge Oliveira), Os Ossos de Ngungunhana e João Kuimba, Chico Ndaenda e Outros contos.
Tem um grande apego pelo bairro onde nasceu: o Choupal, afastando-se cada vez mais da cidade, onde vai pouquíssimas vezes. Por esse motivo e pelo facto de estar à frente duma revista importante como a Proler, procurámo-lo para uma conversa amena e, no fim, tudo ficou reproduzido na entrevista que se segue, onde, entre outras coisas nos diz: “A cidade deixou de me seduzir”.
@Verdade: Sempre foste uma espécie de vagabundo, no sentido de que, em termos profissionais, nunca conseguiste ficar no mesmo lugar durante muito tempo. Pareces alguém que procura, sem pressas, a sombra prometida pelos espíritos…
Marcelo Panguana: Vagabundo eu?O que se passa é que nos nossos tempos torna-se uma espécie de pecado estar no mesmo lugar. Na vida, como na própria arte, é preciso estar sempre em permanente movimento, experimentar novas coisas, conhecer outras pessoas, enfrentar novos desafios. Se calhar sou vagabundo, mas no sentido em que me recuso a ser um conservador para tentar ser um homem do meu tempo.
@Verdade: Tens um percurso literário que se vai tornar mais conhecido a partir de 1987, quando publicas o teu primeiro livro. Isto é, estás a publicar há cerca de vinte anos. O que é que ganhaste como resultado disso?
MP: Ganhei a possibilidade de falar em voz alta, de dizer publicamente aquilo que penso. E também com certa facilidade de abrir as portas que dantes permaneceram sempre fechadas. Aprendi a conhecer o meu país e a amá-lo. Descobri que somos um país com uma cultura extraordinária e principalmente com uma literatura que corre o agradável risco de se tornar, mais tempo menos tempo, numa das literaturas pujantes deste lado de África. Ganhei a maturidade que permitiu aperceber-me de que na literatura nada se ganha, a não ser a imensa satisfação de escrever sempre para deixar os leitores felizes.
Hoje temos a literatura que temos. Os escritores, tal como o próprio país, estão a crescer, alguns cresceram demais e deixaram de pertencer apenas ao país. Universalizaram-se. Levaram a nossa literatura para lugares a que sempre desejamos chegar, porque a nossa escrita, a de ontem e de hoje, não merece ficar infinitamente confinada no nosso espaço geográfico. Nós não escrevemos mal. Somos apenas demasiado exigentes connosco próprios, subestimamos a nossa criatividade, temos a mania de ajoelharmo-nos ao que vem de fora, mesmo que se trate duma porcaria qualquer. Sinto que nos falta uma crítica literária capaz de educar o leitor, de discutir as fórmulas criativas do escritor. Falta a agressividade das editoras. O livro circula apenas em Maputo. Para editar é preciso esperar por um milagre. Apesar de tudo ganhei a possibilidade de publicar cinco livros nos últimos vinte anos.
@Verdade: E o que é perdeste nesse tempo?
MP: Perdi a inocência de pensar que a literatura podia fazer-se apenas de emoções. A literatura, Chaúque, faz-se com muito trabalho, como acontece, aliás, em todas as outras profissões. O processo de escrita não pode comparar-se, como dizia o Ungulani, ao atletismo. Na literatura não existem cronómetros, nem pistas, nem dopping, nem público a bater palmas enquanto cortamos a meta. Na literatura corre-se sozinho e muitas vezes nunca se corta a meta.
@Verdade: Algumas pessoas que te conhecem dizem que, em termos de performance literária, não deves nada a um Ngugi Wa Tiongo, Eza Boto, Dambuzu Marechera, Wanhenga Xitu…. concordas com eles?
MP: Claro que não. São escritores que pertencem a países onde o tratamento que se dispensa à cultura, e particularmente à literatura, é diferente. Provavelmente com elites mais receptivas à arte e por isso eles tiveram a possibilidade de explodir. Não me comparo a esses senhores. Mesmo em Moçambique não passo de um escritor da periferia.
@Verdade: Nas várias cavaqueiras tenho ouvido alguns escritores afirmarem que, mais tarde ou mais cedo, acabarão ganhando um prémio. Tu também escreves a pensar nos prémios?
MP: Que prémios? São tão escassos e os valores em jogo muitas vezes são ridículos. Seja como for, os prémios são sempre bem-vindos. Mais algum dinheiro no bolso não faz mal a ninguém. Quando ganhei o prémio FUNDAC houve quem se tivesse insurgido pelo facto de ter concorrido a esse prémio, mas depois as mesmas pessoas pediram-me dinheiro emprestado para pagarem as suas dívidas. Não achas isso ridículo? Os prémios representam a expressão do reconhecimento de um determinado júri, em princípio idóneo e competente. Quem sou eu para recusar esse reconhecimento?
@Verdade: E o que é que fizeste com o dinheiro que ganhaste?
MP: Comprei um carro. Passei um mês a alimentar-me como um príncipe. Conheci lugares maravilhosos. Bebi bons vinhos. Fiz de conta que vivia bem.
@Verdade: Fernando Manuel já dizia que tens uma grande obsessão pelo “teu” bairro, o Choupal, que quase não sais de lá. Vens poucas vezes à cidade. Porquê?
MP: A cidade deixou de me seduzir. Já não me reconheço nela. A única coisa boa que vale a pena são as mulheres bonitas e algumas tascas que servem boa comida e enquanto se bebe um copo pode manter-se uma boa conversa. Fora isso, a cidade já não oferece nada ou aquilo que oferece não me interessa. No Choupal os vizinhos ainda se cumprimentam. O ar é fresco. E come-se boa carne. A cidade tornou-se um lugar estranho, onde ninguém se conhece. Já não se fala a minha língua, o ronga. Há muitos sotaques a cruzarem as ruas. No Choupal reencontro um pouco das minhas raízes. É lá, sobretudo, onde consigo escrever.
@Verdade: Tens obrigações a cumprir como intelectual e uma delas é observares o andamento do teu país. Como é que o vês sociopoliticamente?
MP: É um país que ainda se busca a si próprio. Às vezes o poder comete erros terríveis capazes de incomodar qualquer um. Ao mesmo tempo acontecem coisas boas que nos deixam orgulhosos. Penso que o país podia estar melhor se o poder prestasse mais atenção às nossas críticas e deixasse de se preocupar com os interesses partidários. Há um vasto leque de intelectuais que se considera excluído no processo de desenvolvimento do país. Julgo que o país precisa duma oposição forte, credível, que torne o partido no poder mais atento e responsável, uma oposição que fortaleça a nossa democracia.
@Verdade: És director da revista Proler, que tem como vocação – principalmente – incentivar o gosto pela leitura. Mas o que está a acontecer é que é uma publicação que morre constantemente e depois ressuscita…
MP: Sinto-me também como se estivesse sempre a morrer e a ressuscitar.
@Verdade:Mas lembro-me de que dirigiste, durante dois anos, nos princípios da década de ´90, uma página do Notícias a que tu deste o nome de Xipalapala. Aquilo era um regalo. Como é que terminou?
MP: O Xipalapala foi uma das páginas culturais mais interventivas que já tivemos. Uma vez por semana dialogávamos de forma criativa com todo o país. Trouxemos a fotografia, o cinema e outras expressões, inovámos o lay-out. Durante dois anos demos uma enorme contribuição à cultura. Tudo começou com um convite do Albino Magaia, o Faduco abriu-me depois todas as portas. O Xipalapala morreu de morte natural. Em seu lugar nasceu um suplemento cultural que tenta seguir a sua linha.
@Verdade: Na área musical como é que vês o compasso do nosso país?
MP: Já se falou tanto de música e talvez se tenha dito quase tudo. Eu continuo preso aos mesmos gostos, continuo a escutar João Cabaço, Baptista Panguana, a Mingas, o Arão Litsuri, José Bata, o Neto, a viver em Portugal, e muita música tradicional. Gosto também da Ancha. Recuso-me a entrar nesse debate sobre a velha e a nova geração, é um debate falso, instigado em nome de outros interesses. A arte não tem idade, ou és bom ou és uma merda.
@Verdade: O que é que estás ler?
MP: Estou a reler “Memórias”, um livro de Raul Honwana que foi publicado pela primeira vez em 1985. É uma obra muito interessante sob o ponto de vista histórico. E também “Carta a um refém”, um pequeno grande livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupery, que escreveu como experiência da passagem por Portugal a caminho dos Estados Unidos. E leio todos os jornais e revistas que me caem nas mãos. No fundo leio pouco. À medida que o tempo vai passando vou-me tornando um leitor preguiçoso. A cidade deixou de me seduzir.