Isso é uma pura tolice. O que você está a construir é uma porção de refugo – diz-me uma voz. Seja como for, há coisas que ainda que tenham razão não têm razão nenhuma
É sábado o dia que eu mesmo escolhi para entregá-la a sua oferenda. É uma bugiganga sem valor nenhum. Mas os Homens desses tempos, que também são meus, dão-lhe imenso valor. Sublimam-no!
Nesse dia, eu faltei à adoração de Jeová Deus – o nosso Soberano Senhor, porque também acho que a minha vida depende da minha dedicação à escola e ao trabalho secular. “Tolo! Isso é uma pura tolice. O que você está a construir é uma porção de refugo” – diz-me uma voz. Seja como for, há coisas que ainda que tenham razão não têm razão nenhuma – penso eu se calhar equivocado. Eu vou estudar, vou trabalhar e vou edificar o meu império. Caramba! Os homens com o imperialismo!
Despachei as minhas quatro páginas do hebdomadário num só dia, incluindo essa crónica. Confesso-lhe que aqui deve haver muitos erros ortográficos e gramaticais. Mas isso não me importa. O senhor Mussagy irá revisar. Ralhando! Para mim, o importante é rever também a matéria da escola para que – no futuro – eu possa ser um bom profissional. “Que futuro rapaz? Você pode morrer agora” – diz-me uma voz estúpida que me recorda essa eterna prostituta – a morte. A vida é muito precária. É uma precariedade, na verdade.
Aturdido fiquei quando, às 19.30 horas, altura em que cheguei na Avenida de Angola, nesse ghetto que se chama Maputo, não encontrei chapa nenhum. Será que me vou tornar um quadrúpede? Um boi? Vou admitir que me seja transportado nesses autocarros que me recordam o tempo dos navios negreiros? Não é justo. Já estamos independentes há 40 anos. “Que independência rapaz? Você é um eterno escravo” – refere essa voz incómoda e metida à intelectual.
Feliz ou infelizmente, não foi desta vez que a minha mutação animalesca aconteceu. Ela foi adiada para as primeiras horas da segunda-feira, quando for ao trabalho, porque apareceu um minibus em que me enfiei guarnecendo os meus bolsos com as mãos.
Conheço a Marillia não sei há quantos meses e é para a sua casa onde vou. Ela é uma mulher de mil e uma qualidades – pelo menos para mim. A nossa relação teve um começou imprevisível. Mas tornou-se-me intensa, apesar do meu incrível autodomínio.
Há dias inventei um pretexto – bem conseguido – para ir à sua casa, no domingo. Mas as circunstâncias moveram-me a traçar um plano B. Eu devia ir no sábado à noite. Além de tarde demais, o domingo é dia de família.
Aturdida com a minha presença, quase incómoda – sobretudo com o facto de eu estar a retirar-lhe um monte de bugigangas que lhe emprestei não sei há quantas semanas – ela recebe-me.
– Queres entrar ou vais ficar na varanda?
– Não sei!
– Mas é melhor ficar na varanda. Não, entra!
Insistiu até que acabei por entrar, apesar de que eu me sentia bem na varanda. Há mais privacidade.
– Vens exigir as tuas bugigangas mesmo?
– Não! Eu não estou a exigir. Vim buscá-las. Elas são minhas. Haja coerência.
A situação é atordoante, por isso, atroada, ela recolhe-as. Uma por uma. Limpa-as e entrega-me. Nesse dia, na sua casa, cozinhou-se uma iguaria tipicamente nossa.
– Queres comer?
– Não!
Falo muito. As vezes vagueio. Mas nessa ocasião, sou mais objectivo e, sem inventar cerimónias, vou directo ao ponto.
– Na verdade, eu vim entregar-te essa bugiganga. Ela é um presente do seu aniversário.
Ela recebe-a. Fica boquiaberta. Parece-me estar feliz. Muito feliz. Não grita por alegria porque tem autocontrolo. Fico parvo! Eu sou um parvo na verdade. Mas, confesso-lhe, se ela não me tivesse sugerido a ideia, não teria tido presente nenhum. Não sou bom nessa matéria.
Eu já vou para a casa – despeço-me e – ela acompanha-me. A Maríllia é estranha – ou, pelo menos – assim percebo-a. Conhece todos os fios que constroem a teia da nossa relação, incluindo as suas forças e fraquezas. Ela coloca-me as perguntas que se devia fazer, sozinha, em jeito de introspecção. Não respondo-as, apenas digo que a bugiganga é funcional, maravilha e que dentro de instantes ela sentirá a adrenalina, bastando experimentá-la.
Nesse dia, não demorei na paragem. Apanhei o terceiro bus que apareceu e voltei. Mas, ao longo do percurso, contrariamente à Marillia que recebeu uma bugiganga que a deixou tonta, a Sónia está – completamente desnuda na rua – atordoada por, em nome de oferenda, nunca ter recebido bagatela nenhuma. No entanto, a esperança – que primeiro mata – continua a ser a última a morrer.
– Isso é um negócio. Ela quer 200 meticais. E se nós, os mais velhos e idosos, que temos dinheiro a ofertarmos, as pessoas vão dizer que cometemos um abuso sexual.
No minibus em que estou, comenta um ancião, mal educado, sentado ao meu lado sem se questionar sobre as razões que engendraram o desvio comportamental da rapariga. Apenas deixou-se aturdir pela nudez da menina Sónia.
Na verdade, eu também estou aturdido – confesso-lhe. Mas contou-lhe as razões na próxima semana. Pode ser?